Notas sobre o Presidente da República e o Tribunal Constitucional

Decorreu por estes dias em Luanda o V Congresso da Conferência das Jurisdições Constitucionais de África, onde o presidente da República João Lourenço proferiu um discurso entusiasta acerca do Estado de Direito, a independência dos juízes e a importância dos Tribunais Constitucionais.

Como sempre, João Lourenço disse à audiência aquilo que ela queria ouvir, enaltecendo o papel dos tribunais, a necessidade da reforma judiciária e o caminho rumo à Justiça que Angola tem vindo a trilhar. Contudo, alguém, por ignorância ou maldade, “passou uma rasteira” ao presidente, demonstrando, mais uma vez, a incapacidade ou a tendência sabotadora daqueles que rodeiam João Lourenço.

Atente-se na expressão que surge nas várias transcrições do discurso: “​Os modelos keynesiano de justiça constitucional, por um lado, e o de unidade jurisdicional de inspiração norte-americana, por outro, que influenciam as diversas jurisdições de África, não nos devem dividir por serem diferentes.” (Itálico nosso.) O problema desta afirmação é que não existe nenhum modelo keynesiano de justiça constitucional. Keynes foi um distinto economista inglês, que efectivamente tinha muitos interesses, era um amante de arte moderna e de bailado, mas não são lhe conhecidas relevantes incursões no Direito, e muito menos na questão da justiça constitucional.

Obviamente que o redactor do discurso queria dizer “modelo kelseniano” de justiça constitucional, referindo-se ao professor austríaco Hans Kelsen, que fundou a doutrina dos tribunais constitucionais como órgãos separados da estrutura judicial ordinária. Keynes não é Kelsen e Kelsen não é Keynes.

É claro que o presidente não tem de saber estas minudências. O que é grave é que aqueles que supostamente deveriam sabê-las e auxiliar o presidente, na verdade colocam no discurso asneiras gritantes. Este ponto reforça o apelo que várias pessoas têm feito: é premente que João Lourenço se faça rodear de pessoas capazes, instruídas e leais.

No mesmo Congresso, Mogoeng Mogoeng, presidente do Tribunal Constitucional sul-africano, enfatizou o aspecto mais importante referente aos magistrados dos tribunais constitucionais, afirmando que “África deve deixar a tendência de colocar, no sector judiciário, marionetas para servir interesses de outras pessoas” e que “a justiça deve trabalhar para que, independentemente de quem se trata, seja uma pessoa poderosa ou rica, a justiça e o constitucionalismo prevaleçam, em igualdade de circunstâncias para todos”.

Em termos doutrinais, o argumento defendido por Mogoeng Mogoeng é o seguinte: mais importante do que os textos legais, é a nomeação dos juízes e a sua independência nas decisões que tomam. Há que ter uma perspectiva realista do Direito, e não achar que basta fazer grandes proclamações legais.

Na verdade, se olharmos para o Tribunal Constitucional angolano, não duvidamos de que a sua consagração constitucional obedece às mais modernas técnicas jurídicas. Mas também sabemos que a sua prática pouco mais tem sido do que uma obediência constante e permanente aos desideratos do poder executivo, sem independência, nem imparcialidade.

O triste facto é que o Tribunal Constitucional angolano, com raras excepções, tem sido precisamente aquilo que Mogoeng Mogoeng descreveu como “marioneta”.  

Há dois acórdãos que condenam, até este momento, a prática do Tribunal Constitucional angolano.

O primeiro é o acórdão n.º 319/2013, que deliberou que a Constituição não conferia à Assembleia Nacional a competência para fazer interpelações ou inquéritos ao executivo, bem como convocar, fazer perguntas ou audições aos ministros. De uma só penada, o Tribunal Constitucional angolano limitou totalmente o controlo e fiscalização por parte dos representantes do povo relativamente ao executivo. Nem vale a pena entrar em discussões jurídicas. Aqueles que assistem ao que se passa nos Estados Unidos, país onde o presidencialismo supostamente imitado por Angola foi criado, vêem quotidianamente os membros do poder executivo a prestar contas perante variadas comissões do Congresso, sem que alguém ache que isso afecta a separação de poderes, que aliás na Constituição angolana não é sequer absoluta, mas antes submetida à interdependência orgânica (artigo 105.º, n.º 3 da Constituição).

O segundo acórdão que encheria de vergonha um judiciário independente é o acórdão n.º 467/2017, onde se delibera que é inconstitucional permitir que o Ministério Público decrete prisão preventiva, mas imediatamente se esvazia todo o efeito útil dessa provisão ao determinar-se que, enquanto o juiz de garantias não for implementado, o Ministério Público pode continuar a decretar detenções.

Este acórdão do TC é uma das mais fortes machadadas no Estado de Direito a que se assistiu nos últimos tempos. Na realidade, consagra uma suspensão sem fim marcado da Constituição.

Se queria salvaguardar os efeitos passados, o TC deveria ter mantido as prisões preventivas decretadas pelo Ministério Público até à data do acórdão, mas determinado que, a partir desse momento, elas teriam de ser decretadas por um juiz, mesmo que não existisse ainda o juiz de garantias.

A conclusão é que a prática do TC tem sido de aquiescência face ao poder político, e não, como se desejaria, de afirmação de um poder judicial forte e independente.

O problema não está nos juízes, todos certamente da mais alta craveira e capacidade intelectual, mas sim na estrutura que os rodeia. Desde logo, a sua forma de nomeação. Nos termos do artigo 181.º da Constituição, dos 11 juízes, quatro são designados pelo presidente e quatro são eleitos por 2/3 da Assembleia Nacional. Assim, oito dos 11 juízes são designados pela mesma pessoa: o presidente da República e presidente do MPLA. E essa designação não está sujeita a qualquer controlo. Mais uma vez, socorremo-nos do exemplo dos Estados Unidos da América. Aí, é o presidente quem nomeia todos os juízes do Supremo Tribunal (que também exerce as funções de Tribunal Constitucional). Mas essas nomeações têm de ser aprovadas pelo Senado.

O exemplo mais gritante da falta de controlo nas designações para os tribunais angolanos foi a estranha dança de cadeiras que ocorreu no início do mandato de João Lourenço, em que o presidente do Tribunal Supremo passou a ser presidente do Tribunal Constitucional, e vice-versa. Rábula maior seria difícil.

Sirva, por isso, o V Congresso da Conferência das Jurisdições Constitucionais de África para olhar para dentro e encetar uma verdadeira reforma da Justiça em Angola, que deverá começar por dotar os juízes de verdadeira independência, deixando de os remeter ao papel de marionetas do poder executivo. Só assim haverá eco do discurso do presidente João Lourenço.

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