Marcy Lopes: Uma Lição de Arrogância

Nas redes sociais foi partilhado um vídeo. Nele surge uma figura a discursar. Veste fatos de bom corte, talvez italianos, gravata de seda, talvez francesa, tem sentido de humor. Dá a ideia de se tratar de alguém que representa a Angola moderna, capaz, sábia. Todavia, quando abandona o humor inicial e começa a falar sobre a fiscalização dos poderes do presidente da República em Angola, apenas a arrogância supera a catadupa de asneiras. A personagem confunde opiniões com verdades, julga que uma discussão jurídica é uma conversa de café. Simplesmente, não estudou. É a desilusão.

 O seu nome é Lopes, Marcy Lopes, secretário dos Assuntos Jurídicos do Presidente da República, e a triste intervenção que produziu teve lugar na quarta-feira, dia 19 de Junho, num encontro sobre a fiscalização dos poderes presidenciais.

Existem vários pontos na alocução de Marcy Lopes que merecem crítica severa. Não propriamente as opiniões do alvitrado futuro ministro da Justiça – pode ter as opiniões que quiser –, o facto de apresentar essas opiniões como verdades da ciência do direito, quando nem são verdades, nem ciência do direito.

Lopes começa por referir que só existem três sistemas de governo, o presidencial, o semipresidencial e o parlamentar. O sistema angolano é obviamente presidencial e atribui ao presidente da República os poderes que normalmente lhe são consignados neste sistema, afirma Lopes.

Isto não é assim. As possibilidades de sistema de governo são inúmeras. Basta lembrar que o constitucionalista Jorge Miranda descreveu o sistema da Constituição angolana como sendo de tipo representativo simples, e que Adriano Moreira atribuiu ao sistema português, em certas circunstâncias, a denominação de presidencialismo de primeiro-ministro. Estas classificações não são dogmas exactos impostos aos países; pelo contrário, são análises posteriores que se fazem à estrutura constitucional e do auncionamento orgânico de cada um dos sistemas de governo em cada país. É evidentíssimo que o sistema de governo angolano tem características presidenciais, mas vai mais longe. Miranda chamou-lhe representativo simples comparando-o às ditaduras plebiscitárias; nós preferimos chamar-lhe presidencialismo imperial ou hiperpresidencialismo. A verdade é que qualquer análise de direito comparado permite facilmente perceber  o grau exacerbado que os poderes presidenciais alcançam em Angola, na teoria e na prática.

Fiscalização e separação de poderes

Depois desta afirmação descabida, Marcy Lopes sai-se com a maior pérola do seu discurso, afirmando que é falso afirmar-se que o presidente da República não é fiscalizado, porque em Angola existe um sistema de separação de poderes. O seu raciocínio é que a separação de poderes garante a fiscalização do presidente.

Não garante. É precisamente ao contrário. Um sistema de separação de poderes evita que um poder fiscalize o outro. O exemplo mais extremo foi o adoptado em França pouco depois da Revolução de 1789. Quis-se criar um sistema de separação de poderes puro e, nessa medida, proibiu-se que os juízes sindicassem as leis e actividades da Administração, precisamente para que um poder não interferisse noutro. Esta doutrina foi levada tão longe, que implicou a adopção de uma norma do Código Penal (artigo 127.º) que punia criminalmente os juízes que se pronunciassem sobre questões pertencentes à esfera dos outros poderes.

Foi por isso que em França demorou muito tempo a existir a fiscalização dos actos administrativos pelos tribunais, por se considerar que tal afectava o princípio da separação de poderes.

Quer isto dizer que a separação de poderes tem de ser combinada com os chamados “checks and balances” que permitam a um poder interferir noutro. Na verdade, o princípio constitucional angolano é o da separação e interdependência de poderes, admitindo a Constituição alguns “checks and balances.” A questão é que estes não são suficientes.

Mais adiante no seu discurso, Lopes aborda o famoso Acórdão n.º 319/2013 do Tribunal Constitucional, que tem sido geralmente entendido como uma limitação à fiscalização do executivo por parte da Assembleia Nacional. Marcy Lopes afirma o contrário, garantindo que todos os mecanismos de controlo existem.

Na realidade, basta ler o acórdão e verificar que fica proibida a participação de ministros e altos responsáveis de departamentos em comissões da Assembleia Nacional ou em audiências parlamentares, a não ser mediante prévia autorização do presidente da República, e que as interpelações e inquéritos ao Executivo, bem como perguntas ou audições aos ministros contrariam o sistema de governo estabelecido na Constituição (cfr. P. 9 e 10 do Acórdão n. º 319/2013).

É isto e nada mais que o acórdão estabelece: proibições claras e expressas de actos de fiscalização da Assembleia Nacional face ao Executivo.

A comparação que o secretário dos Assuntos Jurídicos do Presidente faz com os Estados Unidos – e muitos juristas angolanos gostam de fazer – não colhe.

Nos EUA, o Congresso, especialmente o Senado, têm dois poderes muito fortes de controlo presidencial.

O primeiro é o de aprovar as nomeações. Todos os altos cargos, ministros, embaixadores, juízes, que o presidente dos EUA nomeia têm de ser aprovados pelo Senado. Há, assim, uma fiscalização óbvia. E uma boa parte da doutrina – que, contudo, é disputada – considera que até as exonerações infundadas dos cargos podem ser contestadas pelo Senado.

Além desse poder, o Congresso tem um poder alargado de investigação dos actos do Executivo. O poder do Congresso para investigar e obter informações é muito amplo. Embora não exista uma disposição expressa na Constituição dos EUA que aborde o poder investigativo, o Supremo Tribunal estabeleceu firmemente que tal poder é essencial para a função legislativa, estando implícito a partir da atribuição do poder legislativo no Congresso.

Em certos casos, denominados de Privilégio Executivo, o presidente pode recusar-se a dar informações ou permitir que os seus subordinados as prestem ao Congresso. Todavia, esse privilégio está bem estabelecido na jurisprudência e é limitado às questões de segurança e sensíveis. Basta lembrar que o presidente Richard Nixon resolveu apresentar a sua demissão depois de o Supremo Tribunal ter decidido que não havia razão para Nixon não entregar a quem o estava a investigar as cassetes que continham as suas conversas no Gabinete Oval. Já no tempo de Obama, a invocação do Privilégio Executivo por parte deste presidente para não entregar determinados documentos do Departamento de Justiça foi declarada inválida em 2016.

Como se sabe, a Constituição dos EUA é curta e sintética, mas a prática, os tribunais e a dinâmica jurídico-política têm criado um sistema de interdependências e fiscalização muito intenso, ao contrário de Angola, em que tem acontecido precisamente o oposto.

A destituição do presidente

Finalmente, Marcy Lopes ainda brindou a sua audiência com mais um espantoso desafio, afirmando que a Constituição angolana permitia que se destituísse o presidente caso este violasse a Constitução; para tal, bastaria que a UNITA promovesse a destituição na Assembleia Nacional.

Mais uma asneira. Possivelmente, Lopes referia-se ao artigo 129.º, cuja epígrafe é “Destituição do Presidente da República.” Pela leitura do artigo percebe-se logo que as causas de destituição estão devidamente catalogadas e correspondem ao cometimento de crimes ou ao surgimento de incapacidades físicas ou mentais. Provavelmente, Lopes teria em mente o crime de violação da Constituição (artigo 129.º, n.º 2). Porém, mesmo estando redigido de forma ampla, este crime não representa “tudo”, como pretendia Lopes. Um crime tem de estar sempre inserido na dogmática penal, teremos de procurar o dolo, a ilicitude, os nexos de causalidade, etc. E depois não basta haver um voto na Assembleia Nacional. Este voto apenas inicia um processo que culminará num julgamento no Tribunal Constitucional. É do mais disparatado, e mesmo irresponsável, encorajar a oposição a promover a destituição do presidente apenas para provar que este não viola a Constituição.

Repetimos: o problemas do discurso de Marcy Lopes não é o de ele ter uma opinião favorável aos excessivos poderes constitucionais do presidente, O problema é ele transformar arrogantemente essa opinião em ciência exacta, pretendendo classificar todos aqueles que dele discordem como imbecis, quando, na realidade, os seus próprios argumentos demonstram a mais profunda e douta ignorância. Uma nota final sobre a prática política presente. Pode-se defender, tal como acontecia na velha Roma republicana, que em casos de emergência o dirigente deva ter todos os poderes para resolver a situação. Assim, João Lourenço deverá manter os actuais poderes para garantir o sucesso da luta contra a corrupção e a transição de Angola para um real Estado de Direito democrático. No entanto, a sua maior conquista política e constitucional seria, no final dos seus mandatos, ter deixado um sistema de governo equilibrado.

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