O Saque da Vice-Governadora do Kuando Kubango

O Kuando-Kubango tem sido notícia, nos últimos dias, por uma série de detenções no âmbito combate à corrupção. Jossi Hermenegildo Pedro e Isaac Severino Kanjengo, respectivamente directores de gabinete do governador Pedro Mutindi e da vice-governadora Sara Mateus, já se encontram detidos sob suspeita de vários crimes de corrupção. O segundo vice-governador Bento Francisco também tem o gerente das suas empresas particulares na cadeia.

Na província, abundam as lamentações sobre esta luta contra a corrupção, que muitos acusam de estar deformada por uma “justiça selectiva”. Outros protestam contra a sorte das figuras intermediárias, que acabam na cadeia, enquanto os dirigentes – os cabecilhas – gozam de imunidades, de foro privilegiado e são mantidos nos cargos.

O Maka Angola publica hoje a terceira investigação sobre a corrupção nas altas esferas do Kuando-Kubango, centrando-se no envolvimento de empresas de Pessoas Expostas Politicamente na prestação de serviços no Hospital Provincial. Damos ainda conta das preocupações dos cidadãos, que revelam haver corruptos maiores a quem devemos dedicar atenção. Há espaço para todos, respondemos, cada um na sua vez.

Hoje, trazemos à liça a figura da vice-governadora para o sector político, social e económico da província, Sara Luísa Mateus, e as três empresas a si associadas na província.

A Kuanavale Investiments, Lda., prestadora de serviços ao Hospital Provincial do Menongue, tem como sócio-gerente o sobrinho directo de Sara Mateus, Manuel Tuta Mateus Miguel. Para além da actividade empresarial, Manuel Miguel é funcionário público, técnico superior de identificação civil e criminal da delegação do Ministério da Justiça e Direitos Humanos no Kuando-Kubango.

A vice-governadora, membro do comité central do MPLA, está ligada directamente a duas empresas, a L.I.F.M. e a Kambacazu, cujas relações contratuais com o governo provincial denunciam o negócio consigo própria.

Kuanavale Investiments, Lda.

De 23 de Abril de 2018 a22 de Abril passado, a Kuanavale Investiments recebeu um total de 201,4 milhões de kwanzas por serviços prestados ao Hospital Provincial do Kuando-Kubango, no Menongue.

Para se ter uma ideia sobre alguns desses serviços, a Kuanavale recebeu do hospital, apenas em Abril, a quantia de 10,4 milhões de kwanzas, como pagamento de cartões de “recarga Unitel e Zap [televisão]”. Esse valor era superior a qualquer das cinco rubricas dedicadas à aquisição de medicamentos para a mesma unidade hospitalar. As Organizações Katiavala apresentavam o valor máximo disponibilizado nesse mês para a compra de medicamentos, com uma dotação de 9,4 milhões de kwanzas. Em relação às quatro rubricas destinadas à aquisição de material gastável médico, o valor para as recargas é superior a cada uma delas.

Por que é que o hospital não contrata directamente os serviços da Unitel e da Zap? Eis a questão. Para o mês de Maio, o valor cabimentado para a Kuanavale repassar os cartões da Unitel e da Zap baixou para 3,6 milhões de kwanzas.

Esta empresa foi constituída em 2013 por Manuel Tuta Mateus Miguel, que, como já se referiu, é sobrinho da vice-governadora Sara Luísa Mateus. Há um dado curioso sobre esta empresa. No período em questão, revistos os seus fluxos financeiros, a empresa apenas regista o recibo de pagamentos do hospital e do governo provincial do Kuando-Kubango.

No hospital, a Kuanavale presta oficialmente serviços de limpeza e saneamento, para os quais foram atribuídos, até ao final do ano, mais 115 milhões de kwanzas. Este mês, receberá um total de 7,5 milhões de kwanzas. Também vende materiais de escritório e as benditas recargas.

“Não nos devemos calar quando há pessoas a morrer por falta de medicamentos e crianças sem estudar por falta do sistema da educação, causados pela corrupção”, sublinha Manuel Miguel, o proprietário da Kuanavale.

Manuel Miguel explica que começou a prestar serviços ao hospital através de uma carta de intenções por si enviada em 2016. “Comecei com o fornecimento de papel, dez caixas de papel”, conta.

Segundo o interlocutor, o principal serviço da Kuanavale é a limpeza do hospital, 24 horas por dia, cujo contrato diz ter obtido através de “concurso público dirigido”. “Tenho 30 auxiliares de limpeza e três supervisores a trabalhar no hospital”, esclarece.

“Não faz ideia do que eu faço como jovem empreendedor para manter o hospital limpo”, lamenta.

Sobre o valor absurdo dedicado às recargas da Unitel e Zap, Manuel Miguel tem uma versão diferente. “Sou fornecedor de outros serviços ao hospital. Tem muitos médicos expatriados e estes ocupam seis a oito apartamentos e usa-se muito a internet. Dentro do hospital há muitos televisores e nos apartamentos dos médicos.”

“Durante dois ou três meses forneci esses serviços sem ser pago. O hospital também usa duas máquinas fotocopiadoras e cada toner custa cerca de 800 mil kwanzas na NCR. Este valor também vai para a conta do saldo [recargas da Unitel e Zap]”, esclarece.

Manuel Miguel protesta contra esta investigação e defende a integridade da sua tia, a vice-governadora. “O foco da verdadeira investigação sobre corrupção devem ser outras pessoas, que aqui as tem, e não pessoas honestas e trabalhadoras. São as pessoas que cometem actos de corrupção, recebem dinheiro do Estado e nada fazem. Acredito que saberá quem são essas pessoas.”

Sobre a sua dupla condição público-privada, Manuel Miguel é categórico: “Sou funcionário público e empreendedor privado, como não podia deixar de ser. Sou técnico. Não ocupo cargo de chefia. O governo tem políticas de promoção do empreendedorismo entre os jovens.”

“Tenho que empreender e dar emprego. Não sei se isso me coloca em situação de incompatibilidade. Presto serviços em áreas diferentes. Sinto-me bem. Sou alguém que está a contribuir para o melhoramento dos níveis de emprego na sociedade”, diz.

Manuel Miguel diz mais: “Há pessoas que estão comprometidas com o povo. É preciso ter muita cautela. Isso de mencionar o meu nome [no texto] pode configurar calúnia e difamação.”

Na altura em que Sara Luísa Mateus ocupou o cargo de administradora municipal do Cuito Cuanavale, a única fonte de receitas da Kuanavale era precisamente este município. Os fluxos financeiros desta empresa registam apenas pagamentos da administração municipal da “tia” Sara, entre 2013 e 2014, de perto de 19 milhões de kwanzas.

De seguida, a Kuanavale entrou em período dormente, tendo surgido, nessa altura, a empresa L.I.F.M.

“A Kuanavale ficou parada em 2014 por conta da crise. Eu estava para ir fazer o mestrado em Direito Constitucional em Portugal, mas a crise. Só retomei [a actividade com a Kuanavale] em 2016, tendo iniciado com a exploração da madeira”, revela o empreendedor. Segundo Manuel Miguel, é com os fundos ganhos na exploração da madeira que investiu em equipamentos para a limpeza do hospital.

Conforme os documentos em nossa posse, a Kuanavale passou a receber do hospital a partir de 23 de Abril de 2018.

L.I.F.M

A 26 de Novembro de 2014, Lucas Mateus Mirco Makay, Isaac Severino Kanjengo e Francira Cambata Mateus Filho, constituíram a empresa L.I.F.M. – Prestação de Serviços. Quem são estes personagens? Lucas é sobrinho de Sara, Severino é o director de gabinete da vice-governadora, e Francira é a filha menor desta.

De 2 de Fevereiro de 2015 a 7 de Julho de 2017, a L.I.F.M. drenou dos cofres do Cuito Cuanavale um total de 51,5 milhões de kwanzas. A única fonte de receitas da empresa, cuja beneficiária final é Sara Luísa Mateus, foi a administração municipal do Cuito Cuanavale, sob liderança da mesma Sara Luísa Mateus.

Enquanto vice-governadora para as áreas social e económica, Sara Mateus já atribuiu pagamentos no valor total de 226,9 milhões de kwanzas à L.I.F.M., por serviços que levantam dúvidas e por outros não prestados ao governo provincial do Kuando-Kubango.

Por conta de vários crimes, o seu director de gabinete e gerente da empresa, Severino Kanjengo, já se encontra em prisão preventiva, desde o dia 13 passado.

Lucas Mateus Mirco Makay, o outro co-gerente da empresa, continua a exercer o cargo de delegado provincial da Saúde.

Kambacazu & Filhos, Limitada

A 9 de Junho de 2005, Sara Luísa Mateus constituiu a empresa Kambacazu com o malogrado André Carlos Cazungo e o filho de ambos, José Manuel Mateus Cambuta.

No intervalo de um ano, entre 9 de Março de 2018 e 25 de Março passado, Sara Luísa Mateus autorizou a transferência de 74,3 milhões de kwanzas da conta do governo provincial para a sua empresa Kambacazu. No mesmo período, a vice-governadora dirigiu-se aos balcões do Banco de Poupança e Crédito (BPC) e fez levantamentos na ordem dos 10,7 milhões de kwanzas, como assinante da conta da Kambacazu.

No total, o governo provincial do Kuando-Kubango tem cabimentado um total de 192,3 milhões de kwanzas para a Kambacazu, por autorização directa da dona da empresa e sua gerente efectiva, a vice-governadora Sara Luísa Mateus.

O que diz a lei?

Um conhecido penalista refere que os casos ora expostos configuram vários ilícitos previstos e puníveis pela Lei dos Crimes Subjacentes ao Branqueamento de Capitais (Lei 3/14).

O causídico cita “o recebimento indevido de vantagens e participação económica em negócio que são, por si só, modalidades de crimes cometidos em exercício de funções públicas, traduzindo-se na classe dos crimes de corrupção praticados por funcionários públicos”.

De acordo com o advogado, a legislação contém regras claras sobre “o dever de observação de princípios de imparcialidade, isenção, honestidade, probidade, razoabilidade, verdade e de boa execução quer no desempenho de funções públicas, quer na condução e contratação de serviços públicos”.

Esses princípios servem para impedir “que os gestores públicos e promotores de contratação pública, em quaisquer das suas modalidades, por ajuste directo, prévia qualificação, concurso por convite ou concurso público propriamente dito contrate com empresas suas, ou de parentes directos”.

“A forma como as sociedades foram constituídas manifesta uma das técnicas de branqueamento de capitais comuns entre os gestores públicos. Constituem empresas de fachada ou com sócios interpostos, sendo os beneficiários finais os próprios gestores públicos”, acrescenta.

Para o advogado, há indícios suficientes para a abertura de um processo-crime, “por forma que a gestora em causa possa justificar que não houve participação económica em negócio e recebimento indevido de vantagens, e não violou regras da Probidade e Contratação Públicas”.

Comentários