Hospital do KK: Watalala Vende Ovos em Metros Cúbicos

A corrupção mata, temos escrito. Mas há níveis de crueldade arrepiantes nos esquemas de corrupção em Angola. Nas terras do fim do mundo, na província do Kuando-Kubango (KK), chega-nos a ilustração desta crueldade, com o Hospital Provincial do Kuando-Kubango, no município do Menongue, actualmente transformado num dos principais comedouros dos parasitas da corrupção – alguns governantes locais.

Com os seus actos actuais e o seu total desrespeito pelo povo, esses governantes sabotam a cruzada anticorrupção do presidente João Lourenço. Enfraquecem-no aos olhos da opinião pública, uma vez que ele se revela incapaz de moralizar os governantes que nomeia. Um deles é o governador e membro do Bureau Político do MPLA, Pedro Mutindi, sob cuja liderança se multiplicam esquemas absurdos de corrupção no Kuando-Kubango.

Francisco Lopes Watalala, actual chefe de escolta do governador Pedro Mutindi, é um dos figurantes com a responsabilidade privada de fornecer alimentação ao hospital. É o que no MPLA se chama de empreendedorismo. A 28 de Fevereiro de 2018, então motorista de Mutindi, Francisco Lopes criou a Watalala & Filhos, tendo assumido a sua gerência. 

Um mês depois da criação desta empresa, a 28 de Março de 2018, o “responsável da empresa”, Fernando Lopes Watalala, endereçou uma carta de apresentação à direcção do hospital, através da qual passou a prestar serviços sem concurso público. Na altura, ainda a exercer a função de motorista de Mutindi, Watalala propunha a “prestação de serviços” não específicos, fornecimento de medicamentos, material de construção e informático.

Desde que o Maka Angola começou a divulgar os saques no hospital, várias empresas se têm atarefado a submeter facturas fictícias pelos pagamentos que lhes foram efectuados, conforme provas em nossa posse.

Para fornecimentos de material informático e de construção, de Julho a Dezembro de 2018, a Watalala facturou 18 milhões de kwanzas, conforme documentos em nossa posse. Todas as notas de entrega e de referência relativas a esse período têm o mesmo número de referência: N/Ref.ª01/Watalala e filhos ld/2018.

O hospital, com capacidade para 200 camas e um custo de 47 milhões de euros, foi inaugurado a 20 de Agosto de 2017, durante a campanha eleitoral. Na altura, o hospital foi referenciado como sendo dos mais modernos do país e com equipamentos de ponta. Um ano depois, esta unidade moderna foi comprar 100 torneiras, 100 tubos pvc e 49 juntas à Watalala, por três milhões de kwanzas, para efeitos de manutenção. Fontes do Maka Angola junto do hospital garantem que não houve substituição de torneiras nessa unidade por parte da Watalala. Das 100 caixas de lâmpadas, aparentemente fornecidas pela empresa, por 3,5 milhões de kwanzas, também há um mistério sobre onde terão sido colocadas, porque não foram vistas no hospital.

Mais estranho ainda é o facto de todas as notas de entrega feitas e assinadas pela
Watalala não terem sido assinadas como recebidas pelo hospital, como é de lei.

Dos 18 milhões por si recebidos, a Watalala justificou ter vendido tinteiros e resmas de papel no valor de 10 milhões de kwanzas, e mais 1,5 milhões de kwanzas por esferográficas e marcadores. 

Ovos cúbicos em 2019

Além das torneiras, lâmpadas, tinteiros, a Watalala “diversificou” os seus serviços, passando a vender também alimentos.

Desde então, a Watalala aparece como prestadora de serviços no Hospital Provincial do Kuando-Kubango, alegadamente fornecendo víveres e géneros alimentícios, tendo, para o efeito, uma dotação orçamental de 17 milhões de kwanzas, desde Abril passado. Nesse mês, o hospital pagou à Watalala 3,5 milhões de kwanzas pelo fornecimento de alimentos. Em Maio, recebe 2,7 milhões de kwanzas.

Todas as facturas são assinadas pela “direcção da empresa”, por Ernesto Nambalo Canivete, um agente da Unidade de Protecção de Individualidades Protocolares (UPIP) da Polícia Nacional, descrito a nível local como sendo primo de Watalala.

Catarina Gomes, uma cidadã preocupada com a situação do hospital, pergunta ingenuamente: “Como é possível que um guarda-costas do governador tenha uma empresa que fornece serviços de alimentação ao hospital público. É testa de ferro de alguém?”

Para o mês de Janeiro, esta empresa emitiu um termo de entrega, uma nota de cobrança e a respectiva factura, no valor de 3,5 mil dólares, com a mesma referência (N/Ref.ª01/Watalala e filhos ld/2019).

Enquanto o termo de entrega lista apenas os alimentos como “descrição de material” e em quantidades não especificadas, já a factura descreve as quantidades por “volume M3”, em metros cúbicos. Temos então o guarda-costas do governador Mutindi a vender alho, ovos, frangos, chouriço, massa tomate ao hospital em metros cúbicos.

Dos 15 produtos alimentares vendidos em m3, há a excepção da carne de vaca nacional, a única alegadamente vendida em quilogramas (kg) e assim especificada. Também o preço unitário desta carne vem discriminado apenas em quilos (102 kg), e o subtotal da venda desses 102 kg dá 270,950 kwanzas. Nas facturas de 2018, os produtos estão devidamente especificados em caixas. Logo, não se trata de ignorância.

Alguns economistas e contabilistas contactados por este portal, com quem partilhámos a factura, simplesmente dizem que a mesma “não faz sentido” e preferem não fazer comentários adicionais. Também não obtivemos qualquer retorno às nossas chamadas aos dois números conhecidos da Watalala, e a direcção do hospital nunca respondeu ao Maka Angola.

Escritório sede da Watalala & Filhos

Um conhecido empresário nacional, do ramo alimentar, analisa a factura e é peremptório: “Este formato de factura não existe. A alimentação vende-se em quilos ou toneladas. Os metros cúbicos só são aplicáveis à brita, areia e betão. Esta forma de facturar é ilegal e visa esconder o real preço das mercadorias.”

Por sua vez, um alto funcionário do Estado, a par das investigações no Kuando-Kubango, reconhece o descontrolo dos níveis de corrupção na província, mas lamenta “a falta de provas”.

Comparemos apenas, numa tentativa de compreensão da criatividade ou engenho da Watalala nas suas contas e na dieta dos pacientes, o custo de alguns produtos. Aparentemente, a empresa fornece 10 metros cúbicos de ovos pelo valor de 248 mil kwanzas. Como se medem 10 metros cúbicos de ovos numa venda a retalho? Se medirmos apenas a clara e a gema, teríamos então a venda de 10 mil litros de ovo para o consumo mensal do hospital. Visualizemos um camião-cisterna de água (de 10 mil litros) cheio até à borda de ovo em líquido, a ser transportado para o hospital para o consumo mensal. Pelo preço, como dizem os especialistas, isso “nem sequer faz sentido”.

No mercado do Menongue, um cartão de 30 ovos custa em média 1500 kwanzas, mais barato do que nos supermercados. O preço cobrado pela Watalala por 10 mil litros de ovo equivale ao valor de 165,3 cartões com um total de 4960 ovos.

N/Ordem Descrição Volume M3 Preço Akz Subtotal (Akz)
1 Fuba de milho 18 12 100 217 800
2 Leite em pó 15 51 000 765 000
3 Feijão 16 19 400 310 400
4 Água mineral 103 1800 185 400
5 Massa de tomate 10 9600 96 000
6 Peixe corvina 10 25 480 254 800
7 Alho 10 2880 28 800
8 Massa alimentar 10 4200 42 000
9 Sal de mesa 11 5400 59 400
10 Peixe cachucho 19 27 950 531 050
11 Frango 22 9200 202 400
12 Ovo 10 24 800 248 000
13 Arroz 17 10 800 183 600
14 Carne de vaca nacional 102 kg 102 kg 270 950
15 Chouriço 10 10 440 104 400
  TOTAL GERAL     3500 000

Carros para o procurador e o comandante

Há um elemento curioso que tem ridicularizado a boa vontade do presidente João Lourenço em combater a corrupção e que expõe a sua fraqueza na tomada de decisões contra os “marimbondos” que infestam o governo. É o descaso pelas leis, pelo bom senso e dever de serviço público pelos seus próprios governantes e dirigentes do MPLA, que manda no país há 44 anos.

O caso que a seguir relatamos demonstra, de certo modo, a promiscuidade e o atropelo de funções entre o executivo e o judiciário, que impede a separação de poderes e a transparência nas investigações judiciais de casos como o de Watalala.

A 3 de Abril passado, o governador Pedro Mutindi atribuiu uma viatura Range Rover Sport ao subprocurador geral da República, João Nelson Lucas Catumbela Lima. Passou-lhe a Credencial nº 01/GPCC/2019, para circular sem impedimentos “enquanto os documentos definitivos correm trâmites legais na Direcção de Viação e Trânsito”.

Usando a mesma faculdade, o governador Mutindi também atribuiu um Toyota Land-Cruiser Prado ao delegado provincial do Ministério do Interior e comandante provincial da Polícia Nacional, Domingos Ferreira de Andrade.

Essas viaturas foram apreendidas, em Luanda, no âmbito das investigações criminais feitas ao anterior governo do general Higino Carneiro (2012-2016).

Um conhecido jurista considera ilegal o acto do governador em atribuir as viaturas apreendidas, “num processo de investigação que corre os seus trâmites legais”.

“Nos termos do Código do Processo Penal, tem de ser usada a figura do fiel depositário, que deve conservar o bem até decisão judicial final”, adianta. E explica que depois da apreensão dos bens, nomeação judicial de fiel depositário e, terminado o processo, “por decisão judicial se deve afectar ou vender [os bens] em leilão”.

De acordo com o jurista, que já exerceu cargos públicos de relevo e participou na elaboração de várias leis, as circulares do governador não fazem quaisquer referências à constituição dos beneficiários como fiéis depositários.

“Não me parece ser competência do governador [Mutindi] constituir alguém fiel depositário”, sublinha. O jurista alerta que “o pior vai acontecer com os bens recuperados no quadro do confisco ou perda alegada [na luta contra a corrupção]”.

No passado dia 17, o governador e primeiro secretário provincial do MPLA, Pedro Mutindi, orientou a reunião do comité provincial do seu partido. Nesta reunião, o governador Mutindi instou os membros do seu partido a continuarem a trabalhar sem se preocuparem com as investigações publicadas neste portal sobre a corrupção local. De acordo com as fontes presentes, o governador acusou o autor de ser “americano” e não angolano, e garantiu aos presentes que as denúncias públicas serão, em última instância, ignoradas pelo poder central.

Este é o mesmo MPLA que, recentemente, lançou uma campanha de moralização da sociedade contra a corrupção, enquanto internamente exorta os seus membros a manterem o statu quo.

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