O Golpe de Sal do Deputado Jú Martins (1)

José Eduardo dos Santos concede, a título de compadrio e por tráfico de influências, uma garantia soberana ao deputado do MPLA Jú Martins (João de Almeida Azevedo Martins), para um crédito de 30 milhões de dólares no banco do MPLA, o Banco Sol, destinados a financiar a Starlife, Lda., um negócio de sal, farinha e óleo de peixe. O israelita Dudik Hazan, de 35 anos, mais conhecido nos círculos do poder em Angola como David, investe acima de um milhão de dólares do seu dinheiro para início do projecto, e Jú Martins entra com a influência política. Perde-se o rasto dos 30 milhões de dólares, dos quais David, que assinou o contrato de mútuo, nunca viu sinal.

Dois funcionários israelitas que cumpriam ordens do sócio-gerente David são condenados a pesadas penas num julgamento bizarro por branqueamento de capitais e abuso de poder. Porquê? Porque aplicaram os fundos do investidor israelita no projecto de exploração de duas salinas (Messada e Macaca) em Benguela, que gerou mais de 500 empregos. Também cuidaram das necessidades luxuriosas do deputado Jú Martins, que foi o queixoso neste processo judicial. Com este golpe, Jú Martins apodera-se de todo o negócio.

Para o conseguir, o deputado apenas precisou da pronta cumplicidade do sistema judicial, às avessas consigo mesmo, ainda atrelado aos interesses dos poderosos. Temos, então, uma justiça amordaçada sem autonomia face ao poder político.

Há semanas, a “repugnante e chocante” extinção de procedimento criminal contra Jean-Claude Bastos de Morais, para a qual não foi apresentada fundamentação legal, veio apenas desmascarar o que sempre esteve mal: o sistema judicial auto-submete-se por completo aos interesses do dinheiro e dos políticos influentes e suas arbitrariedades.

E é nesse contexto de perversão dos tribunais angolanos que se insere também o caso da Starlife, protagonizado pelo famoso Jú Martins, actual secretário do Bureau Político para a Reforma do Estado, Administração Pública e Autarquias.

O princípio do fim

Comecemos pelo fim. No passado dia 7 de Março, o juiz Milton Cafoloma, da 2.ª secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal de Benguela, condenou, no âmbito do processo n.º 2079/17, a pesadas penas de prisão (superiores a 8 anos) os réus Tal Eliaz e Royi Atia pela prática dos crimes de abuso de confiança e branqueamento de capitais. Contrariamente ao que os réus, cidadãos estrangeiros, tinham solicitado, o julgamento decorreu sem serviço de tradução. Ao indeferir este pedido, o juiz fez com que os réus, cujo domínio da língua portuguesa é muito rudimentar, não compreendessem os termos técnicos do julgamento.

Os dois israelitas, ex-membros das forças especiais do seu país, vieram para Angola ao serviço do regime de José Eduardo dos Santos. Depois disso, foram trabalhar com David, também ele antigo militar israelita das tropas especiais chegado a Angola em 2006 ao serviço do regime. Nos seus primeiros tempos em Angola, os três homens prestaram serviços de treino militar às forças especiais da presidência – os Chacais –, à Unidade de Guarda Presidencial, aos Comandos e aos serviços de inteligência, tendo-se depois envolvido em vários negócios no país.

Em 2 de Julho de 2014, conjuntamente com Jú Martins, David constituiu a sociedade Starlife Group, Lda., destinada à produção de sal e ao fabrico de farinhas e óleos. Um ano antes, em Maio de 2013, o israelita assinara um contrato de investimento com a então Agência Nacional de Investimento Privado (ANIP), no valor de quatro milhões de dólares, para a construção de uma fábrica de farinhas e óleo de peixe, com a influência de Jú Martins, mas sem que este participasse formalmente. David comprou os equipamentos fabris à China, mas estes nunca chegaram a Angola, porque alegadamente não havia terreno onde construir a fábrica.

Garantia soberana para Jú Martins

A 25 de Fevereiro de 2016, o então ministro de Estado e chefe da Casa Civil do PR, Edeltrudes Costa, endereçou “ao camarada Jú Martins”, o Ofício nº 549/Gab. Chefe Casa Civil/PR/2016 dando-lhe conta do seguinte despacho presidencial: “Urgente: À Casa Civil. Incluir o projecto [Starlife] no conjunto de projectos que serão seleccionados para beneficiar do apoio do ‘fundo de apoio às exportações.’”

Passados quatro meses, David assinou um contrato de mútuo com o Banco Sol, para a concessão de 30 milhões de dólares ao projecto conjunto com Jú Martins. Esse contrato tem a data de 15 de Junho de 2016.

Em Agosto do mesmo ano, David viajou para o exterior do país.

Três meses depois da assinatura do contrato, o então presidente da República e do MPLA, José Eduardo dos Santos, emitiu uma garantia soberana do Estado angolano, no valor de 30 milhões de dólares, para o projecto do deputado do MPLA e então membro do seu Bureau Político para os Assuntos Políticos e Eleitorais, Jú Martins.

Através do Despacho Presidencial n.º 278/16, de 15 de Setembro de 2016, José Eduardo dos Santos deu a garantia a “acordos de financiamento a serem celebrados pela Starlife Group para o financiamento dos projectos referentes às salinas Starlife, Macaca II, N’zeto, bem como a reabilitação de uma fábrica de farinha e óleo de peixe.”

Para que tudo ficasse em “família”, o Banco Sol, com o suporte da garantia, concedeu o crédito, antes do despacho presidencial, à empresa. Como se sabe, o Banco Sol é detido pelo MPLA, através da sua holding GEFI, proprietária de 99% da Sansul, que por sua vez controla a maioria do banco (ver aqui e aqui).

Aqui temos mais um exemplo da habitual promiscuidade entre o Estado e uma elite dirigente oligárquica preguiçosa e de rapina. Não se vê por que razão uma iniciativa privada no sector do sal necessita de uma garantia soberana e de um empréstimo do banco do partido. O investimento estrangeiro foi suficiente para fazer funcionar as salinas.

“É a velha ideia da acumulação primitiva de capital de José Eduardo dos Santos, distribuir as riquezas do país pelos seus pares do MPLA”, refere a deputada Mihaela Webba.

Um advogado, que prefere o anonimato, refere a emissão da garantia como “um acto que integra a prática de ilícitos criminais, para promover e alimentar a corrupção e o compadrio à custa do erário público”, e cita o artigo n.º 127 da Constituição, que prevê a responsabilidade criminal do presidente.

“Se não fosse o Jú Martins a pedir o favor ao presidente, este concederia a garantia soberana para um negócio de sal? A resposta é não. Estamos em presença de um crime de tráfico de influências. A PGR tem todas as condições para abrir hoje mesmo um inquérito e solicitar que José Eduardo dos Santos preste declarações”, afirma a constitucionalista e deputada da UNITA.

Em relação a Jú Martins, o advogado lembra o que a lei diz quanto aos agentes públicos, “por força da alínea b), do nº 2, do artigo 15º da Lei da Probidade Pública”. Com efeito, defende o advogado, houve violação de vários articulados da referida lei, incluindo o artigo 19º: “A actuação do agente público deve fundar-se em considerações objectivas, orientadas para o interesse comum, à margem de qualquer outro facto que exprima ou favoreça posições pessoais, familiares, corporativas ou quaisquer outras que colidam com o interesse público.”

Mais adiante, o advogado chama também a atenção para os estatutos do MPLA, que terão sido violados por Jú Martins, sobretudo no que toca a “ser um lutador intransigente contra a corrupção, conforme o seu artigo nº 1, do Artigo 20º”.

Zanga de compadres

Um mês depois de José Eduardo dos Santos ter emitido a garantia soberana a favor do seu subordinado no MPLA, a 6 de Outubro de 2016, Jú Martins intentou várias queixas-crime contra o seu sócio israelita, quando este se encontrava fora do país. David não mais regressou a Angola.

Inicialmente, os assistentes e o chefe de produção e logística da Starlife, respectivamente Tal Eliaz e Royi Atia, foram chamados como declarantes, mas depois, na ausência do sócio-gerente, foram constituídos arguidos.

Segundo o deputado do MPLA, Tal Eliaz e Royi Atia teriam desviado dinheiro da empresa para as suas contas particulares, apropriando-se desses montantes de forma ilícita. Jú Martins ainda acrescentou mais factos, incluindo ter entrado para a sociedade sem dinheiro, mas com viaturas e outros bens materiais. O relatório final (actualizado) do DNIAP sobre o caso, assinado pela então directora nacional, Júlia de Lacerda Gonçalves, reconfirma tal facto a 18 de Maio de 2017.

Nos seus depoimentos, Royi Atia referiu que os camiões entregues por Jú Martins à Starlife saíram da Casa de Segurança do Presidente da República, na altura dirigida pelo general Manuel Hélder Vieira Dias Júnior “Kopelipa”.

Os nove camiões, de fabrico chinês, estavam há anos ao serviço privado de Jú Martins, no transporte e comercialização de brita e areia, e encontravam-se todos avariados, conforme dados em posse deste portal. Coube a David a importação de peças da China e a cobertura dos custos com a vinda de mecânicos da China e Ucrânia para pôr os camiões a funcionar, de acordo com as provas em nossa posse.

Em toda a documentação disponível nos autos de tribunal, não consta qualquer elemento a comprovar que Jú Martins tenha transferido quaisquer meios financeiros próprios – os quais, apesar disso, reclamou no processo judicial – como contribuição sua para a empresa Starlife, Lda.

*A publicação deste caso continua amanhã.

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