Contorções Dolorosas da Justiça Angolana: o Caso João Sonhi

Não é só no caso do Fundo Soberano, que envolve José Filomeno dos Santos e Jean-Claude Bastos de Morais, que a justiça angolana se enrola nas suas próprias contradições e é desacreditada a uma velocidade assustadora.

Uma situação que temos vindo a acompanhar no Maka Angola é a da inventona judicial do pastor Daniel Cem, antigo líder da Igreja Adventista do Sétimo Dia, e que já provocou um morto por tortura – João Dala. As circunstâncias continuam até hoje por investigar, apesar do conhecimento directo que foi dado ao presidente da República  e de um simulacro de julgamento com detenções inaceitáveis. O pastor Cem foi um dos torturadores de João Dala, em conluio com os seus amigos do SIC, o comissário Fernando Bambi Receado e o subcomissário Ngola Kina (ver aqui).

Tudo pode resumir-se na forma como Daniel Cem utilizou de forma abjecta os meios judiciais para alcançar os seus fins inconfessáveis, violando de forma indigna a famosa sentença evangélica contida em Mateus 7:1: “Não julgueis, para que não sejais julgados.” Tudo isto já foi, no entanto, amplamente descrito pelo Maka Angola. O que nos interessa hoje, na senda dos falhanços da justiça a que temos vindo a assistir, é sublinhar os comportamentos inaceitáveis dos agentes judiciais e a falta de sindicância por parte dos órgãos responsáveis, como o Conselho Superior da Magistratura.

Concentremo-nos nas reviravoltas e nos aparentes contorcionismos do Ministério Público (MP), bem como no juiz António Francisco, magistrado judicial da 13.ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, no Kilamba Kiaxi. Este juiz foi responsável, em 29 de Dezembro de 2017, pela condenação de seis dirigentes da Igreja, sem provas e sem ter ficado estabelecido qualquer nexo de causalidade. Com os mesmos desequilíbrios, este juiz surge agora a pronunciar João Sonhi, isto é, a proceder à acusação judicial contra ele.

A 21 de Fevereiro de 2019, o juiz António Francisco pronunciou João Sonhi por rapto, sujeito à medida de coacção de apresentação periódica às autoridades. Entramos no domínio do rocambolesco. João Sonhi tinha escapado à inicial sanha persecutória do pastor Daniel Cem e dos seus acólitos judiciários. Na realidade, Sonhi havia sido afastado desse processo devido a um formalismo, mas Cem sempre insistiu na sua acusação e condenação. Isto levou a que, em 29 de Abril de 2018, o MP fizesse um despacho de abstenção e declarasse extinto o procedimento criminal contra João Sonhi. O assunto parecia terminado, mas o pastor não desistiu e, depois de algumas picardias com o MP, que já relatámos, avançou para uma acusação particular.

A surpresa não está aí, mas no facto de, em 9 de Outubro de 2018, surgir uma acusação contra João Sonhi assinada por uma procuradora da República e em papel timbrado do MP, contrariando o que havia sido decidido no anterior mês de Abril, declarando o procedimento extinto. O processo ressuscitou das cinzas… sem se saber porquê. E rapidamente o juiz António Francisco decidiu-se a pronunciar João Sonhi e a levá-lo a julgamento por rapto, com circunstâncias agravadas. Note-se que a procuradora o acusara por autoria ou cumplicidade: já o juiz, deixa cair a cumplicidade, que implica uma pena muito mais leve, e pronuncia somente por autoria.

Esta acusação e pronúncia levantam duas dúvidas muito pertinentes.

A primeira diz respeito aos factos indiciadores de João Sonhi. Não se vislumbram circunstâncias que permitam ligar efectivamente João Sonhi ao suposto rapto. Apenas se refere uma declaração de outro arguido, sem valor probatório relevante, se não for confirmado por outras provas. Ora, percorrendo a história contada, quer na acusação, quer na pronúncia, não se verifica nenhum evento que impute a João Sonhi qualquer actuação no caso. Aliás, apenas lhe são feitas mais duas referências. Uma por parte do irmão de Daniel Cem, que diz que ouviu, quando estava ao telefone, a menção do nome de João Sonhi, num contexto que não sabe esclarecer; a outra afirma que Sonhi esteve presente numa refeição num restaurante com alguns declarantes no processo, não tendo sido ouvida qualquer conversa. Aparentemente, também o assassinado João Dala terá mencionado Sonhi, mas isso não se sabe realmente. Dala foi barbaramente torturado durante 15 horas para confessar a autoria de um rapto que nunca aconteceu, em Luanda, no mesmo dia em que se encontrava na fronteira do Luvo, na província do Zaire, a fazer negócios.

Há aqui um claro problema de prova. Existe uma declaração de outro arguido que envolve Sonhi, mas que não passa disso, numa afirmação sem valor probatório; uma refeição em que não se sabe do que se falou; uma menção vaga por parte do irmão do ofendido que diz que ouviu algo do outro lado de uma linha telefónica; e uma suposta confissão de um torturado morto.

A João Sonhi não lhe é imputado um único facto na organização e execução do rapto inventado por Daniel Cem e pelos seus comparsas do SIC. Nem um. Em termos jurídicos, isto é igual a zero e não se percebe como origina uma acusação e pronúncia.

Depois, mais intrigante é o volte-face do MP. Em 29 de Abril de 2018, o procurador da República Alberto dos Prazeres Guimarães escreve, e citamos: “Abstendo-me de acusar o arguido João Sonhi e, concomitantemente, ordeno a extinção do procedimento criminal em curso contra o mesmo e consequente arquivamento dos autos.” Deste despacho foi João Sonhi notificado pelo próprio MP em 7 de Maio de 2018.

Então, em Maio de 2018 o MP despacha no sentido de arquivar o processo, e em Outubro acusa?

Não se compreendem estes procedimentos, e existem aqui indícios de fortes ilegalidades e eventualmente de comportamentos inexplicáveis por parte de alguns magistrados. Por outro lado, não se entende como é que o mesmo juiz que já julgou o caso, e que demonstrou uma grande parcialidade, incluindo ter recebido dinheiro em plena audiência do tribunal da parte do queixoso, surge com competência para a pronúncia.

Este juiz devia, obviamente, estar impedido, nem que fosse pelo simples facto objectivo de já ter feito um julgamento pelos mesmos factos e por isso já ter convicções definidas. Não poderia nunca voltar a julgar o mesmo caso. A acontecer, tal representa a violação de todas as normas de imparcialidade e isenção.

É evidente que os Conselhos Superiores da Magistratura deveriam actuar de forma clara e visível sobre estas trapalhices. Ademais, ainda se espera a posição do presidente da República sobre uma morte debaixo de tortura cometida por oficiais superiores do SIC.

Todavia, as instituições parecem mudas e quedas perante tamanhas arbitrariedades judiciais.

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