Questões de Justiça na Visita de Marcelo a Angola

A visita do presidente da República portuguesa a Angola tem vindo a decorrer num ambiente festivo de afectos, emoções e amizades. Ironicamente, faz lembrar a visita que outro Marcelo fez há 50 anos a Angola. As imagens da época mostram-nos um Marcelo Caetano, presidente do Conselho de Ministros de Portugal, a descer risonho do avião da TAP Santa Cruz e a ser rodeado por aplausos e manifestações de apreço. Em 1969, Marcelo Caetano desfilou em triunfo num Mercedes descapotável pelas ruas de Luanda. Esta foi também uma visita de emoções e afectos. De tal maneira que alguns estudiosos referem que a apoteótica visita de Caetano a Luanda serviu para o convencer a manter a desastrosa política ultramarina de Salazar, insistindo numa guerra derrotada pelo progresso histórico, e não implementando as mudanças que, teoricamente, havia defendido no passado.

Marcelo Rebelo de Sousa, que deve o seu nome à homenagem que os seus pais quiseram fazer ao outro Marcelo, não tem diante de si os dilemas do seu antigo professor de Direito, e encara esta visita como o coroar dos esforços que fez, juntamente com o governo português, para estabilizar positivamente as relações com Angola, depois do mal-estar criado pela acusação criminal a Manuel Vicente. Portanto, esta é uma visita de comemoração – ideia amplamente espalhada, e não por acaso. Trata-se da comemoração do 65.º aniversário do presidente angolano, e da comemoração do terceiro ano do mandato presidencial de Marcelo. Não há nada de errado neste ambiente de efeméride. Naturalmente que, além das comemorações, se falará do pagamento de algumas dívidas a empresas portuguesas e do estreitamento dos laços económicos entre os dois países. Também nada disso está errado, embora não se perceba muito bem por que razão há sempre dívidas a empresas. Na verdade, a economia deveria ocupar as agendas dos dois presidentes, mas não com estas referências habituais; antes procurando novos e mais promissores rumos para o futuro. Todavia, deixamos essa questão para outro texto.

Agora, no momento presente, há um tema que é fulcral nas relações entre os dois países, e que não deve ser varrido para debaixo de qualquer tapete cerimonial. Esse tema é o da justiça e coloca-se a dois níveis, até certo ponto antitéticos.

O primeiro liga-se ao facto de se começar a vislumbrar que – além dos nefastos acontecimentos que geraram já uma condenação em primeira instância de um magistrado do Ministério Público português e de um advogado português que defendia os interesses do Estado angolano, e que logicamente só não gerou a condenação de Manuel Vicente porque o processo foi separado e seguiu para Angola – existem indícios de que a penetração e influência degenerativa de alguns membros da elite angolana no sistema de justiça português poderão ter ido mais longe. Neste portal, já reportámos várias vezes sobre as suspeitas que originaram agora uma queixa-crime do embaixador Adriano Parreira em Lisboa acerca de possíveis comportamentos desadequados de magistrados portugueses (ver aqui e aqui).

Quer isto dizer que os dois países, Angola e Portugal, têm de se confrontar com a seguinte questão: houve ou não uma influência ilícita generalizada na justiça portuguesa por parte de alguns dirigentes angolanos, condicionando as investigações criminais?

E em caso afirmativo, as autoridades de ambos os países devem colaborar no sentido de averiguar o que se passou, como se passou e retirar as devidas conclusões. Neste caso, Angola devia ajudar Portugal a reforçar e robustecer as suas instituições judiciais.

O segundo nível em que a justiça imporia a colaboração dos dois países diz respeito à presente campanha anticorrupção iniciada vigorosamente por João Lourenço. É sabido que muitos dos actos criminosos dos suspeitos agora indiciados pelo Ministério Público angolano tiveram lugar em Portugal, designadamente múltiplas operações de branqueamento de capitais. Ora, aqui, a justiça portuguesa deveria apoiar os esforços angolanos no sentido de investigar e apresentar resultados em relação a esses actos. E mais: muitos dos suspeitos acantonaram-se agora, numa espécie de auto-exílio, em Lisboa, furtando-se a notificações para serem ouvidos em sede de investigações criminais. Também aqui as autoridades portuguesas poderiam dar o auxílio devido, de modo essas pessoas não pudessem escusar-se aos processos e fossem realmente ouvidas.

Não há dúvidas de que, na investigação de crimes de branqueamento de capitais e na possibilitação de notificações e demais actos judiciais a angolanos residentes em Portugal, as autoridades portuguesas podem e devem desempenhar um papel de extremo relevo.

Estamos aqui, portanto, perante uma verdadeira situação de igualdade e paralelismo entre Estados: por um lado, Portugal precisa da ajuda angolana para esclarecer a conduta de alguns dos seus magistrados relativamente a processos-crime que envolviam antigos dirigentes angolanos; por outro lado, Angola necessita do auxílio português para levar a bom porto o combate contra a corrupção actualmente em marcha.

O encontro amistoso entre os dois presidentes da República poderia ser o momento para se definir uma estratégia conjunta relativamente a estas questões – prementes – da justiça.

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