Chamavam-me de Maluco!

Chamavam-me de maluco! Também me apelidaram de “frustrado”, “antipatriota”, “agente da CIA”, “vendido” e “traidor”.

Suportei uma longa e espinhosa perseguição política e incontáveis cenas com a polícia.

Tive de enfrentar campanhas de difamação, privações económicas e isolamento social.

Fui levado a julgamento por ter denunciado a corrupção e as violações dos direitos humanos perpetradas por eles.

Mas quem são “eles”? Eles são os membros do regime de José Eduardo dos Santos (JES): os indivíduos que usufruíram e foram cúmplices do regime de JES. São eles que personificam a corrupção institucionalizada, a captura do Estado, a repressão e o medo que prevaleceram em Angola ao longo dos 38 anos em que Dos Santos se manteve no poder.

Em Setembro de 2017, João Lourenço – o homem que JES escolheu para lhe suceder – foi eleito presidente, e decidiu que a podridão era demais, sendo imperioso acabar com a corrupção generalizada. Em consequência, dentro do seu próprio partido dominante, o MPLA, uma série de bandidos de elevado perfil e com altas patentes estão finalmente a ser responsabilizados, depois de décadas a saquear o país com total impunidade. E é assim que nem a família de JES se escapa, com José Filomeno dos Santos na cadeia desde há seis meses, por ter desviado milhares de milhões de dólares do Fundo Soberano.

O MPLA é, desde a independência em 1975, o partido único no poder.

Ironicamente, aqueles que me difamam, atacam ou ridicularizam por manter a minha luta contra a corrupção, agora chamam-me de “amigo do presidente”.

Antes de passar a explicar porquê, gostaria de sublinhar o quão ciente estou de que o Oslo Freedom Forum funciona como espaço de inspiração criado para os dissidentes. Porém, desta vez, não venho como dissidente que queira partilhar a história de um regime persecutório, que me assediou e atacou.

Em vez disso, estou aqui para partilhar uma esperança, para vos falar sobre a janela de oportunidade de mudança que talvez se tenha aberto num regime africano aparentemente intratável.

A 4 de Dezembro do ano passado, reuni-me com o presidente Lourenço durante uma hora. O presidente começou por pedir publicamente desculpas – perante todos os jornalistas que ali se encontravam para registar o acontecimento – pelo incidente que acontecera na véspera. Juntamente com outros membros de uma delegação da sociedade civil, eu fora convidado para um encontro com o presidente, porém a minha entrada seria recusada pelos funcionários do palácio. Fui posto de parte, impedido de honrar o convite pessoal do presidente para me encontrar com ele.

De alguma forma, para certos membros do regime do MPLA, eu ainda era o inimigo número um. O facto de o presidente me ter chamado e estar disponível para colaborar comigo nos temas da corrupção e das violações dos direitos humanos desagradou a muita gente.

Aos beneficiários do anterior regime surpreende-lhes que o presidente denuncie a ganância dos seus próprios pares. Os camaradas de partido capturaram o Estado para seu proveito, e estavam convencidos de que poderiam controlar o novo presidente, mantendo o statu quo. Porém, agora vêem-no agir como um agente provocador.

O presidente Lourenço incitou-me a prosseguir com o meu trabalho de denúncia da corrupção e a remeter as provas relevantes para a Procuradoria-Geral da República, de modo a gerar investigações formais, bem como a actuar como sempre fiz, no sentido de contribuir para incutir a ideia do Estado de direito nos cidadãos e de expor a corrupção. Saí da reunião incentivado para fazer um trabalho ainda melhor. O aparelho de Estado deixará de ser um obstáculo. Trabalharei em paz.

Desta vez, aqui no Oslo Freedom Forum, os meus amigos já não podem meter-se comigo por eu estar sempre em tribunal, como aconteceu nos últimos três encontros em que participei.

Há dias ajudei uma família enlutada a entregar uma carta ao presidente da República, em protesto pelo facto de o presidente ter promovido a elevados cargos e posições dentro do Serviço de Investigação Criminal (SIC) dois homens conhecidos pelos seus actos hediondos de tortura: o comissário Fernando Manuel Bambi Receado e o sub-comissário Lourenço Ngola Kina. Em Dezembro de 2015, estes dois homens tomaram parte activa na tortura de um cidadão angolano chamado João Alfredo Dala. Durante um violento interrogatório que se prolongou por quinze horas ininterruptas, chegaram ao ponto de mutilar os órgãos genitais de João Dala. A vítima morreria algum tempo depois, em consequência directa dos ferimentos que sofreu, conforme comprovado pela autópsia . 

Já antes eu tinha abordado este tema com o presidente. Segundo ele, antes de promover os referidos facínoras, não recebera qualquer informação que sugerisse esse tipo de comportamento, e nenhum dos membros do Conselho de Defesa e Segurança alguma vez expressou reservas quanto à elegibilidade daqueles homens para a promoção.

O director de gabinete da Presidência reuniu-se com a Família de João Dala e recebeu pessoalmente a carta. Quando os familiares enlutados o informaram de que pretendiam tornar pública aquela carta, o director de gabinete encorajou-os a fazerem isso mesmo, e prometeu que em breve receberiam uma resposta oficial.

Bem, em 2017, quando publiquei Os Campos da Morte: Relatório sobre Execuções Sumárias em Luanda, 2016-2017 ,no qual expus os sistemáticos assassinatos extrajudiciais levados a cabo por agentes do Serviço de Investigação Criminal, o presidente Lourenço ordenou que se criasse uma comissão de inquérito. Foi-me atribuída a tarefa de organizar o espaço para que a comissão ouvisse as vítimas sobreviventes, as testemunhas, os familiares, cuja presença eu tive de garantir e financiar.

Foi um significativo passo em frente. No entanto, ainda hoje aguardo o desfecho oficial desse caso, e começo a ficar impaciente.

Ao longo de muitas décadas, o regime Dos Santos apoiou-se na estratégia de dividir para reinar, como aliás acontece em muitas outras cleptocracias. Em torno do presidente, gerou-se uma conspiração para enriquecer aquela elite presidencial, a qual se empenhou em instilar o medo no seio da população. Muitos dos beneficiários do antigo regime procuram agora angariar apoio dentro do partido reinante para resistir ao esforço do presidente Lourenço na luta contra a corrupção.

Por todo o lado se diz que ninguém, nem mesmo o actual presidente, tem as mãos suficientemente limpas para poder criticar os outros.

Há quem não acredite que o presidente queira genuinamente lutar contra a corrupção.

Outros recorrem à tentativa de chantagem, argumentando que agiram a pedido e em benefício do partido no poder: que o desvio de dinheiros públicos serviu para que o MPLA pudesse ganhar – quer dizer, manipular – as eleições.

Muitos dos altos funcionários do MPLA, agora chamados a responder pelas suas atividades criminosas, antes desprezavam o sofrimento de quem ficava à mercê de um sistema judicial corrompido e baseado na injustiça. Hoje, tornaram-se miraculosamente nos mais acérrimos defensores do Estado de direito.

Há demasiadas vozes a exprimir receio pelas potenciais consequências de levar a tribunal as mais altas figuras do país – consequências terríveis, dizem, para o partido do governo e para o país.

A questão de fundo é esta: querem que tudo se mantenha na mesma. Estes indivíduos são  altamente perigosos.

Eu apoio a agenda anticorrupção do presidente. Através dela, é possível criar uma plataforma que moralize a sociedade e ponha um fim ao reino da impunidade. É um bom ponto de partida para criar uma força de mudança em Angola, com vista a um futuro livre do domínio perpétuo do MPLA. Porém, enquanto cidadão atento, preocupa-me o calcanhar de Aquiles do presidente: a economia.

Para que a luta contra a corrupção seja bem-sucedida a longo prazo, a administração pública precisa obrigatoriamente de ser reformada segundo dois princípios:

  • Estabelecer um sistema de meritocracia, enquanto método eficaz de extirpar o favoritismo, o nepotismo e a incompetência criminosa.
  • Adoptar uma abordagem holística para superar o estado moribundo da economia, na qual quase todos os sectores ainda são controlados pelo Estado ou por funcionários corruptos do Estado, alguns dos quais hoje sob investigação.

Do meu ponto de vista, o presidente precisa de uma agenda radical. Pode começar por restruturar a sua equipa do Ministério da Economia, afastando todos os que sejam incompetentes ou que pretendam manter o statu quo. Para alcançar o sucesso, o presidente precisa ainda de criar um plano económico que crie empregos e corrija as tabelas salariais, de modo que as pessoas possam de facto acreditar que irão melhorar a sua qualidade de vida. 

Para abrirmos o caminho da mudança real, esta luta pela justiça e pelos direitos económicos tem de se tornar a força motriz de todos nós, seja no governo, na oposição ou na sociedade civil.

* Adaptação do texto apresentado no Oslo Freedom Forum, na Cidade do México, a 26 de Fevereiro de 2019.

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