Ignorância ou Corrupção na Justiça

A recuperação de Angola pode enveredar por inúmeros caminhos. Mas, por vezes, a interrogação sobre por onde começar torna-se a mais premente questão.

Contudo, não haja dúvidas. A justiça é uma das vias fundamentais para a recuperação de Angola. É urgente dotar o país de uma justiça célere, sábia transmissora de confiança aos investidores e protectora dos direitos dos cidadãos. Temos de acreditar que os juízes sabem o que fazem e não são corruptos.

Todavia, entre as palavras e os actos há um enorme fosso. No terreno, somos confrontados quotidianamente com decisões judiciais tão absurdas, que somos obrigados a pensar que alguns juízes desconhecem o direito ou foram corrompidos. E queremos todos deixar de ter essas suspeitas.

Atentemos a mais um absurdo do sistema judicial.

Estamos a falar do processo que correu os seus termos com o n.º 844/17-B no Tribunal Provincial de Luanda, na 3.ª Secção dos Crimes Comuns, decidido a 1 de Dezembro de 2017 pelo juiz Edson Escrivão.

Nesse processo, era ofendida Maria Celeste Rola dos Santos, de 79 anos, e era réu José Manuel Martins Janeiro, ambos sócios, com 50% cada um, da sociedade Sanfil, Lda. O Ministério Público acusava José Janeiro de um crime de abuso de confiança envolvendo um milhão e meio de dólares. Os factos referem-se à empresa Sanfil – Santos e Filhos, Lda. e a um contrato celebrado por Janeiro com a MAT, Lda., sem permissão dos estatutos, pelo qual esta passou a utilizar as instalações da Sanfil, Lda., pagando a Janeiro uma renda de oito mil dólares mensais. Mas, o mesmo Janeiro é sócio-gerente da MAT Lda., ou seja alugou as instalações a si próprio e usou este empresa, com o mesmo objecto social, para inviabilizar a Sanfil.

Destes factos resultaram dois comportamentos relevantes. Toda a contratação foi feita sem o conhecimento da sócia Maria Celeste dos Santos, e o réu ficou com o dinheiro das rendas recebido mensalmente todo para si.

Celeste dos Santos, a sócia lesada por José Manuel Janeiro

No julgamento desse processo, o juiz dá como provado que o réu “fez seus e gastou em proveito próprio”, sem consentimento da ofendida, avultadas quantias (fls. 183 e 184 dos autos). Portanto, não restam dúvidas de que ficou estabelecido que José Manuel Janeiro se apoderou de dinheiro que não lhe pertencia.

Contudo, absurdamente, o juiz Edson Escrivão considera que ficar com dinheiro que não lhe pertence não constitui um crime. De maneira confusa e errada, argumenta que não estão preenchidos os pressupostos típicos do crime de abuso de confiança. O juiz conclui então tratar-se de uma questão de meras dívidas cíveis, a qual deve ser resolvida num tribunal não criminal.

Isto é estapafúrdio. O que está em julgamento não é uma dívida de José Manuel Martins Janeiro a Maria Celeste Rola dos Santos, mas sim o facto de Janeiro se ter apropriado de dinheiro que pertencia à sociedade que detém a meias com Celeste, prejudicando tanto a sua sócia como a sociedade. Janeiro ficou com dinheiro que não era só seu.

A única questão a remeter para o foro cível seria a referente às autorizações de contratação. O saque de dinheiro alheio é uma questão diferente.

Senão vejamos: no crime de abuso de confiança, protege-se o bem jurídico designado como propriedade alheia, no contexto de uma relação de confiança entre o agente e o proprietário, inscrevendo-se a essência típica do ilícito na inversão do título de posse. Isso acontece quando o agente adquire por título não translativo da propriedade uma relação fáctica de domínio sobre a coisa para lhe dar um certo destino mas na verdade dando-lhe outro, passando a comportar-se como seu único proprietário (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de Fevereiro de 2009).

É precisamente este o caso. O réu recebeu dinheiro pertencente à Sanfil e ficou com ele. É tão simples como isto. Ao agir desta forma, prejudicou a empresa e a outra sócia. O que espanta é que, perante factos tão simples, o juiz faça uma confusão tão grande.

 

Da mesma maneira, não é convincente qualquer referência a amnistias. A partir do momento em que o réu continua a receber as rendas e a não as entregar à sociedade e aos outros sócios, então mantém-se a executar o crime. Quer isto dizer que está numa situação de crime continuado, devendo a sua conduta ser unificada num único crime e punida com referência à data do último facto praticado.

Providência cautelar

Dentro da mesma situação factual, teve lugar uma providência cautelar que correu os seus termos na 2.ª secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda, com o n.º 3157/17-D, e que foi decidida em Novembro passado.

Nesta providência, Maria Celeste dos Santos requeria que José Manuel Martins Janeiro deixasse de receber pessoalmente as rendas objecto da contenda, e que a empresa MAT passasse a depositá-las numa conta indicada pelo tribunal, procedendo-se deste modo até estarem resolvidos os processos judiciais em curso.

A intenção da providência era clara: evitar que Janeiro se apoderasse privadamente de mais dinheiro da empresa, como já tinha sido averiguado noutros processos.

José Manuel Janeiro, o sócio que desviou para si rendimentos da empresa

A juíza Iracema de Azevedo, na sua decisão sobre a providência, dá como provado, mais uma vez, que José Manuel Martins Janeiro se apropriou da totalidade das rendas pagas entre 2002 e Novembro de 2017, pelo menos, nunca tendo prestado contas do dinheiro (pontos 14 e 15 da matéria provada, fls. 73 da decisão). Por consequência, não existem dúvidas de que o réu e requerido nos processos ficou com dinheiro que pertencia à empresa e não a si mesmo. A juíza entende mesmo que Maria Celeste dos Santos tem um justo receio de lesão grave. Contudo, e espantosamente, decide pelo indeferimento da providência, por considerar que o dano pode não ser irreparável.

De facto, para que uma providência cautelar seja decretada, face à lei, são necessários dois requisitos cumulativos, isto é, que se verifiquem ao mesmo tempo. São eles o justo receio da lesão de um direito e a dificuldade em reparar essa lesão. No caso vertente, a juíza Iracema de Azevedo reconhece que o direito de Maria Celeste dos Santos foi violado e pode continuar a ser violado, mas entende que essa violação não é irreparável. Quer isto dizer que a sócia está a ser roubada desde 2002 e que continua a sê-lo, porque os juízes arranjam sempre forma de evitar que ela não concretize o seu direito. Isto é muito duvidoso.

O fundamento avançado pela juíza para não dar provimento ao requerimento chama-se, na doutrina, periculum in mora, expressão latina que significa “perigo no atraso”. Esta doutrina significa que o tribunal deve decretar uma providência cautelar sempre que exista receio fundado de produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses do requerente, e não decretar essa providência cautelar se não houver esse perigo.

No caso concreto, os prejuízos de difícil reparação referem-se ao facto de Maria Celeste dos Santos e a empresa de que é sócia poderem nunca vir a receber o dinheiro desviado. Na verdade, não existe qualquer garantia de que José Manuel Martins Janeiro disponha de um milhão e meio de dólares para devolver. Possivelmente, não os tem. Assim sendo, existe o verdadeiro perigo de nunca pagar. Acresce que a empresa MAT deixou de pagar rendas, pelo menos durante um período. Aqui temos outro perigo.

O perigo de mora tem de ser aferido nas circunstâncias do caso. Ora, um caso em que existe uma permanente e constante violação do direito desde 2002 indicia claramente que muito dificilmente se recuperará o dinheiro das rendas. Há um comportamento permanente que constitui o melhor exemplo de periculum in mora.

É por isso que não se compreendem de todo as decisões destes juízes.

Este é mais um exemplo de decisões judiciais sem lógica legal e sem fundamento jurídico que temos vindo a denunciar no Maka Angola e que tornam Angola num país onde a propriedade e o investimento não são protegidos e onde o “roubo” é legalizado.

Urge pôr fim a estes comportamentos, caso a ideia de recuperação económica do país seja para ser levada a sério. Os ladrões e corruptos não devem continuar a merecer protecção sob pena de se desencorajar os investidores por falta de seriedade e imparcialidade nos tribunais.

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