O Centro Comercial de Mota Liz: Ilegalidades e Má-Fé

Como se pode lutar contra a corrupção, quando altas figuras do sistema judicial, responsáveis pelo zelo da legalidade, são as primeiras a agir à margem da lei?

É esta a pergunta essencial suscitada pelo caso de Luís de Assunção Pedro da Mouta Liz, reputado vice-procurador da República de 53 anos mais conhecido como “Mota Liz”.

Na sua qualidade de “empreendedor”, o procurador está a construir um centro comercial – um negócio lucrativo pessoal – em clara violação do Estatuto do Ministério Público no que se refere à dedicação exclusiva ao exercício do cargo de magistrado.

Em Setembro passado, já incidindo sobre o caso Mota Liz, reportámos a apropriação ilegítima de um terreno em Luanda por uma alta entidade pública, bem como as confusões daí resultantes.

Desde então, o Maka Angola tem aprofundado as investigações e está em posse de novos documentos que permitem esclarecer o pântano de ilegalidades do processo do vice-PGR Mota Liz. A construção do centro comercial no terreno ilegitimamente apropriado já sofreu três embargos, por decorrência de um litígio em tribunal, entretanto desrespeitados pelo procurador, com a cumplicidade das próprias autoridades municipais que tomaram a referida decisão.

O detentor dos direitos sobre o terreno, Pedro Lucau Lussuca Matias, afirma não ter realizado qualquer contrato com Mota Liz, pelo que a construção estaria a acontecer em terreno alheio e seria ilegal.

Em dois encontros com o detentor do terreno – Junho e Setembro de 2017 –, Mota Liz tinha sido alertado para a ilegitimidade da posse de que se arroga. O detentor do terreno explicou ao Maka Angola que também mostrou ao vice-PGR os documentos médicos sobre o cancro que tem no cérebro e lhe explicou que precisa do seu bem para cuidar da sua saúde. “Ele leu o documento e não disse nada”, conta Pedro Matias.

Mota Liz, por sua vez, invoca a compra dos direitos sobre o terreno a uma terceira pessoa, Esperança Ganga. As decisões existentes sobre a propriedade do terreno não reconhecem qualquer direito a Esperança Ganga, que chegou a ser detida duas vezes por burla. Este é o ponto da situação reportado.

Depois de, em Setembro passado, o Maka Angola ter publicado o primeiro texto sobre o caso, quem sentiu a mão da justiça foi Pedro Matias. A 12 de Outubro teve de depor, durante quatro horas, diante de José Rodrigues Cambuta, procurador do SIC na Divisão de Polícia do Talatona, por causa do texto deste portal. O queixoso, João Domingos Kipaca, mandatário de Mota Liz, acusa o esbulhado de calúnia e difamação. Entretanto, o procurador Cambuta tem intervindo no processo desde o início, incluindo diligências no terreno com João Domingos Kipaca e encontros com a administração municipal.

O Maka Angola manifesta-se preparado para mais esta batalha judicial pela verdade e pela justiça.

 

O pântano

As obras de construção do centro comercial de Mota Liz, no Bairro Quifica (inicialmente sob jurisdição do município de Belas) tiveram início em Setembro de 2016. A administração de Belas, de forma diligente, embargou a obra a 27 de Setembro do mesmo ano.

Só dois meses depois, a 18 de Novembro de 2016, o administrador municipal de Belas, Mateus António da Costa, emitiu a Declaração de Posse nº 650/Adm.Belas/16 a favor de Mota Liz como titular de quatro mil metros quadrados de terreno, no Bairro Quifica, na comuna do Benfica, Luanda.

Com efeito, a referida declaração tinha validade de apenas dez meses, até 25 de Setembro de 2017, e servia de simples base para “a tramitação do direito de superfície”.

Dois meses após ter recebido a Declaração de Posse, a 23 de Janeiro de 2017, Mota Liz passou uma procuração ao cidadão João Domingos Kipaca para tratar da legalização do referido terreno.

Passados mais dois meses, a 15 de Março de 2017, a directora do Gabinete Jurídico e Contencioso da Administração Municipal de Talatona, Domingas Almeida Batalha, emitiu um parecer para o embargo da obra, por “perturbar o efeito útil da acção” judicial, e por estar a ser executada sob transgressão administrativa. A então administradora de Talatona, a arquitecta Manuela Maria da Conceição Bezerra, deu o seu aval. A obra foi embargada a 20 de Abril do mesmo ano.

Entretanto, o vice-PGR, em declarações recentes ao Maka Angola, adianta que as obras vão continuar, porque “estão devidamente licenciadas pela administração de Talatona e documentadas”.

A realidade demonstra o contrário. As licenças de construção só podem ser oficialmente emitidas mediante apresentação do título de direito de superfície.

 

O esquema do Alvará

Por sua vez, só a 9 de Novembro de 2017 o filho do vice-PGR, Edson Ismael Manuel Liz, solicitou à Administração de Talatona a licença para a construção de um centro comercial de dois pisos, com 22 unidades. O pedido especificava a dimensão do terreno como sendo os quatro mil metros quadrados.

A 26 de Dezembro de 2017, o director de Gestão Urbanística, Urbanismo e Cadastro, arquitecto Hermínio Évora da Cruz, deu parecer favorável à atribuição da licença a Edson, sob Processo n.º 2080, por ter cumprido todos os requisitos.

Ora, no mesmo parecer (Informação Espelho n.º 361/017), o arquitecto referiu que “o processo é acompanhado da Declaração de Posse n.º 650/Adm.Belas/16, emitida aos 18 de Novembro de 2016 em nome de Luís de Assunção P. da Mouta Liz, pai do solicitante”.

Como acima referido, essa Declaração de Posse perdeu a validade a 25 de Setembro de 2017. Como pode a administradora de Talatona, a arquitecta Manuela Maria da Conceição Bezerra, ter homologado o parecer e autorizado a concessão da licença com base num documento sem qualquer validade jurídica? A ilegalidade é óbvia.

Há outra ilegalidade cristalina. Como acima descrito, o pedido de licença de construção e a documentação anexa é sobre um terreno de quatro mil metros quadrados. Pelo “milagre da multiplicação” que resulta da arbitrariedade dos actos administrativos do Estado, os arquitectos mencionados concederam uma licença de construção para um terreno de 5.600 metros quadrados. Terá sido o efeito da ressaca da noite anterior de Natal?

Para o efeito, Manuela Bezerra, no mesmo dia 26 de Dezembro de 2017, remeteu a tabela de custo da “taxa para viabilidade e licença de construção” ao filho do procurador. O total arredondado era de seis milhões de kwanzas para a concessão da licença.

Como veremos de seguida, é evidente que houve uma fraude e eventual falsificação de documentos.

A nota de cobrança expedida por Manuela Bezerra a 26 de Dezembro de 2017 tem o código Refª 775/GABAMT/24.11.9422017. Edson Ismael Manuel Liz, filho mandatário do procurador Mota Liz, reage a essa cobrança antes de ela sequer existir: a 5 de Dezembro – 21 dias antes da cobrança Edson Liz, como se tivesse viajado até ao futuro, contesta o valor que lhe será cobrado a 26 de Dezembro… E fá-lo nos seguintes termos:

“Em decorrência da tramitação do processo, foi-me entregue uma guia de pagamento no valor de 6.017.440.00 (seis milhões e dezassete mil, quatrocentos e quarenta mil kwanzas), o que perfaz o custo de Taxa (UCF) 5 e 88.00 kz/m2 (oitenta e oito kwanzas por metro quadrado). […] Venho junto de V. Excia. rogar para que intervenha na redução em 50% (setenta por cento) de tão avultado valor. Ou seja 3.008.720,00 kz (três milhões, oito mil e setecentos e vinte kwanzas).”

Os “setenta por cento” por extenso são fielmente reproduzidos conforme a carta de 5 de Dezembro de 2017. Essa carta deu entrada na administração do Talatona, conforme o protocolo, dois dias antes de ter sido assinada, a 3 de Dezembro.

Há outro problema legal grave. Em todo o processo, não há uma procuração de Mota Liz para o filho solicitar a licença de construção. Trata-se de um processo com duas pessoas jurídicas diferentes que se confundem numa só.

Entretanto, a 1.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda (Proc. n.º 2793/2017 – A) exarou, a 13 de Dezembro de 2017, uma sentença favorável a Pedro Matias, como sendo ele – e não Esperança Ganga, que vendeu o terreno a Mota Liz – o legítimo utente do terreno.

Ao Maka Angola, Mota Liz reitera que “se há uma decisão judicial, a questão é executá-la. Só tem de ser executada a decisão judicial”.

 

Novo regresso ao futuro

Mas os actos arbitrários da administração de Talatona continuaram. Em novo “regresso ao futuro”, oito dias antes da sua própria cobrança, a 18 de Dezembro de 2017, Manuela Bezerra autorizou a redução do valor para 50 por cento, “conforme tem sido em [ilegível] com os precedentes”. Em resumo, o pai enviou o filho para tratar de quatro mil metros quadrados e este regressou a casa com mais 1.260 metros quadrados de oferta, assim como um desconto do Estado de 50 por cento. Mas, compulsada a documentação, também não há sinais de pagamento ao Estado por parte do filho de Mota Liz.

É simplesmente formidável!

Contudo, inexplicavelmente, o Alvará de Licença de Construção nº 013/2018 foi emitido no princípio do ano de 2018 pela então administradora de Talatona, Manuela Bezerra, sem data específica. O alvará foi passado a favor de Edson Ismael Manuel Liz, filho de Mota Liz.

Mais uma vez, as irregularidades administrativas são típicas. Na documentação analisada há o pagamento do Alvará de Licença de Construção, no valor de e 530 kwanzas, pagos no balcão do Banco de Comércio e Indústria (BCI) a 16 de Novembro de 2017. Este valor é um milésimo dos 3.008.72,00 kwanzas que configuram a redução em 50% do montante inicial que o filho de Mota Liz deveria ter pago.

“Isto é fuga ao fisco. A administradora que autorizou a redução do valor tinha de ser chamada para explicar por que razão reduziu o valor determinado em 50 por cento e, ainda por cima, o filho do procurador pagou praticamente nada”, explica uma especialista do Ministério das Finanças.

O Maka Angola publicou o primeiro texto sobre este caso a 28 de Setembro deste ano. Em seguida, a 18 de Outubro, a Direcção dos Serviços de Fiscalização de Talatona solicitou à Direcção Municipal de Gestão Urbanística, Urbanismo e Cadastro (DMGUUC) dados complementares sobre o processo do vice-PGR Mota Liz.

“Com o requerimento entrado nesta Administração Municipal de Talatona, através da carta datada de 9 de Novembro de 2017, o senhor Edson Ismael Manuel Liz solicita a licença de construção de um estabelecimento comercial a ser edificado no Bairro Kifica, Distrito Urbano de Benfica”, lê-se na resposta do director da DMGUUC, Hermínio Évora da Cruz.

O referido director explica que “o processo foi instruído tendo como base a Declaração de Posse n.º 650/Adm.Belas/16, emitida aos 18 de Novembro de 2016 em nome de Luís de Assunção P. de Mouta Liz, pai do solicitante”.

Uma jurista, sob anonimato, resume o caso com algum sentido de humor: “O angolano consegue fazer coisas sem lógica, sem racionalidade. Como o objectivo é atingir a ilegalidade, não pensa de forma racional.”

 

O quadro legal

O analista jurídico Rui Verde considera o processo de Mota Liz eivado de “uma ilegalidade fundamental de extrema gravidade”.

“A partir do momento em que Mota Liz tem conhecimento de que lhe foi vendido um bem alheio sabe, como jurista, que tal acto é nulo, bem como todos os subsequentes”, refere o jurista.

Para Rui Verde, Mota Liz tinha duas opções: desistir de qualquer direito sobre o terreno e demandar Esperança Ganga ou propor uma acção judicial de simples apreciação que declarasse a quem pertencia o terreno, aguardando os seus trâmites. “Ao não fazer nem uma coisa nem outra, o vice-PGR enveredou por um caminho de acumulação de ilegalidades. Agora deve ser investigado e punido”, remata.

A Procuradoria-Geral da República tem de dar o exemplo e começar pelo seu interior. Já chegou a inércia e o encobrimento patrocinados pelo antigo PGR. Muito possivelmente, Mota Liz está a violar a Constituição e o Estatuto do Ministério Público ao ser um empreendedor imobiliário. E viola a lei penal ao construir num terreno alheio.

 

A história repete-se

Esta história e o seu desenvolvimento fazem lembrar os factos subjacentes ao famoso processo de difamação que o então procurador-geral da República, general João Maria de Sousa, intentou contra o autor deste artigo e Mariano Brás. A juíza Josina Falcão, no âmbito do proc. n.º 592-17-B do Tribunal Provincial de Luanda, absolveu os arguidos em Julho passado.

A juíza aproveitou para estabelecer jurisprudência nalguns aspectos.

Um deles diz respeito à existência de processos administrativos irregulares quando estão em causa pessoas ligadas ao poder. Escreveu a juíza que qualquer pessoa tem de cumprir os requisitos necessários e exigíveis nos processos administrativos, não havendo justificação para que um PGR não siga os mesmos trâmites que um cidadão normal (cfr. Acórdão, p. 23).

De acordo com Josina Falcão, deve existir um escrutínio acrescido sobre os servidores públicos em prol da transparência democrática (cfr. Acórdão, p.28).

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