Proposta: Novo Enquadramento Legal contra a Corrupção

O direito não resolve os assuntos da sociedade, é um mero auxiliar. Por essa razão, em Angola, durante décadas, existiram várias leis contra a corrupção que nunca foram aplicadas. Elas estavam no papel, mas ninguém lhes ligava.

Esse foi, aliás, o destino de quase todas as normas relevantes de direito público durante os tempos de José Eduardo dos Santos. Se olharmos para a contratação pública, vemos que se decretaram normas em 1996, 2010 e 2016. Sabemos, também, que nenhuma das grandes obras públicas que investigámos obedeceu as essas normas. Os exemplos da irrelevância do direito em Angola são incontáveis, e demonstram que, na prática, não existiu direito ao longo dos últimos 30 anos.

Actualmente, o discurso é outro e há a expectativa de que as normas jurídicas sejam aplicadas de forma imparcial e independente pelos vários responsáveis: ministros, procuradores, polícias e juízes.

Um primeiro passo já foi dado com a ratificação, publicada em Diário da República a 26 de Março de 2018, por João Lourenço da Convenção da União Africana sobre a Prevenção e o Combate à Corrupção.

Esta Convenção tinha sido aprovada pela Assembleia Nacional angolana em 2006, para ratificação, e José Eduardo dos Santos deixou-a na gaveta.

Agora, Angola aceita em pleno no seu ordenamento jurídico esta norma internacional que, entre outros, obriga os Estados a tomar medidas legislativas contra o enriquecimento ilícito (artigo 8.º), à confiscação e penhora dos proventos e meios da corrupção (artigo 16.º) e à cooperação internacional nas matérias de corrupção e branqueamento (artigo 20.º).

No fundo, esta Convenção estabelece um quadro legal interafricano que permite um real combate à corrupção e que servirá de pano de fundo para as propostas que faremos adiante.

As actuais normas contra a corrupção

É neste âmbito que tem de ser feita uma reflexão sobre o normativo existente para a prevenção e repressão da corrupção. Na verdade, as várias normas e estruturas que foram sendo criadas ao longo dos anos obedeceram sempre ao imperativo da irrealidade. Isto é, tratava-se de mecanismos que não iam ser aplicados, por isso, nunca foram efectivamente testados.

No presente momento, começou, politicamente impulsionado, um combate efectivo contra a corrupção que já levou à instauração de vários processos-crime – transferência ilegal de 500 milhões de USD; burla tailandesa; Fundo Soberano; Conselho Nacional dos Carregadores – que originaram a prisão preventiva ou domiciliar de pessoas politicamente expostas: José Filomeno dos Santos (Zenú), Jean-Claude Bastos de Morais, Augusto Tomás, Walter Filipe, Norberto Garcia.

Contudo, estes casos serão apenas uma ponta muito reduzida do icebergue, e envolvem valores muito diminutos face ao que foi a corrupção desenfreada nos últimos anos. A questão é que os mecanismos, sobretudo processuais e organizatórios, da lei não têm a flexibilidade, celeridade e alcance que são necessários para um promissor combate à corrupção.

Muito provavelmente, com a actual legislação a maior parte dos casos acabará por demorar demasiado tempo, entroncar em dificuldades processuais, alçapões legais e não produzir os resultados que a sociedade espera e a justiça exige, levando, no final de contas, a um caldeirão de frustrações.

Esta a razão essencial para se propugnar por uma mudança na legislação que permita um adequado combate à corrupção. Essa mudança reflectir-se-á essencialmente em aspectos organizatórios e processuais, no sentido de facilitar e agilizar os procedimentos. Serão várias as mudanças que se advogam:
Alta Autoridade contra a Corrupção. Execução da Lei n.º 3/96, de 5 de Abril

A primeira mudança já foi aqui defendida e consiste na coordenação e centralização do combate à corrupção por um organismo próprio.

A melhor forma de sistematizar o combate à corrupção decorreria da execução da Lei n.º 3/96, de 5 de Abril, que criou uma Alta Autoridade contra a Corrupção com poderes alargados (artigos 4.º e 8.º). Esta Alta Autoridade não funcionou e é mais um exemplo da disparidade entre realidade e direito que vigorou nos tempos de José Eduardo dos Santos. Neste momento, é tempo de actualizar a lei e colocar a Autoridade a funcionar.

A Alta Autoridade contra a Corrupção seria o organismo central de combate à corrupção e teria como funções investigar e preparar a acusação dos grandes casos de corrupção, sobretudo os de impacto transnacional. Justificava-se que fosse um órgão com poderes judiciários próprios, podendo investigar, interrogar, apreender, fazer buscas e decretar medidas cautelares nos termos da Lei.

Operando no quadro constitucional e legal, esta Autoridade seria um organismo específico para reprimir a corrupção. A ela seriam atribuídos os casos principais e faria os cruzamentos internacionais necessários.

Não se pense que as democracias não criam equipas especiais quando têm de combater fenómenos criminais sofisticados específicos. Todos vimos os filmes e nos lembramos da equipa de Elliot Ness criada pelo FBI norte-americano, os Intocáveis, que conseguiram prender Al Capone. Mais perto, temos os Scorpions da África do Sul, que até serem extintos por um poder político amedrontado desempenharam um papel relevante na prossecução da justiça. Em Portugal tentou-se, através do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Acção Penal), criar uma estrutura especial para a grande criminalidade. Os seus resultados são mistos, devido à interferência política e às estruturas processuais antiquadas.

No entanto, o facto relevante é que os países precisam de estruturas especiais, orientadas e flexíveis para combater a criminalidade mais evoluída como é a grande corrupção. Angola precisa urgentemente de uma estrutura desse tipo.

Colaboração premiada

Um segundo instrumento para garantir uma efectiva punição da corrupção é aquilo que se convencionou chamar de “delação premiada”, mas que preferimos chamar de “colaboração premiada”. Angola precisa de introduzir na sua legislação a “colaboração premiada”. A “colaboração premiada” é um benefício legal concedido a um arguido que aceite colaborar na investigação criminal ou explicar o papel dos seus comparticipantes num crime.

Esta fórmula facilita a investigação penal e, desde que salvaguarde determinadas garantias, permite simultaneamente rápidas acusações dentro do quadro do Estado de direito.

No Brasil, onde o sistema está bastante desenvolvido e tem sido usado com sucesso, foi a Lei n.º 9613/1998 que desenvolveu o sistema, que já tinha sido introduzido anteriormente. Através desta lei, a colaboração judicial dos arguidos foi estendida à lavagem de dinheiro e previu-se para quem adoptasse os seus preceitos penas mais leves, como a condenação a regime menos gravoso (aberto ou semiaberto), substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou perdão judicial (art. 1º, § 5º, Lei 9.613/1998). Depois, a legislação foi-se aprimorando e na Lei n.º 12.529/2011 já se determina que o colaborador identifique claramente os demais envolvidos e disponibilize informações e documentos que provem o que diz (art. 86, I e II). Ademais, é necessário que não estejam disponíveis com antecedência provas suficientes para assegurar a condenação, o colaborador confesse a sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações (art. 86, § 1º). A Lei n.º 12.850/2013 regulamentou ainda mais especificadamente os termos do acordo de colaboração.

Quer isto dizer que ao colaborador não basta confessar um crime e indicar outros culpados. Tem de fornecer provas do que está a afirmar e não pode simplesmente repetir o que já se sabe.

Portanto, para ser premiada, a colaboração tem de trazer provas e novidades, e está sujeita a um detalhado cardápio de regulações que impedem os abusos.

A Angola basta copiar bem o Brasil. Certamente, com a colaboração premiada seriam alcançados muito maiores e mais rápidos resultados.

Premiação da acção e coadjuvação

Outro mecanismo prático e importante a ser introduzido, que tem algumas semelhanças com o anterior, é a criação de prémios para aqueles, que não sendo arguidos, actuam no sentido da descoberta da verdade. Aqui propõe-se uma medida similar à estabelecida pelo presidente Muhammadu Buhari da Nigéria, que é a política de denúncias. Segundo esta política, aqueles que denunciem práticas corruptas ficarão com entre 2,5 e 5 por cento do montante recuperado. Assim, quem tiver conhecimento de transacções corruptas será motivado a auxiliar a polícia e as autoridades públicas, denunciando estas transacções e obtendo uma compensação financeira.

Congelamento da riqueza inexplicada

Outro instrumento cuja introdução defendemos também é inspirado numa ordem jurídica do Reino Unido, onde é denominado “Unexplained Wealth Order”.Trata-se da introdução daquilo a que se pode chamar “Arresto de riqueza inexplicada”. Este arresto permitiria aos tribunais angolanos arrestarem (congelarem) os bens de pessoas politicamente expostas que não soubessem explicar como obtiveram a riqueza ou de cidadãos envolvidos em actividades criminosas que não soubessem explicar a origem dos seus fundos.

Portanto, quem não saiba explicar a origem dos fundos que permitiram obter bens como casas, jactos, iates, depósitos bancários, empresas, etc., poderá ter esses bens “congelados” até fornecer uma explicação aceitável, ou até se determinar que não há explicação legal e ficar sem eles.

Note-se que a legislação também deveria criar mecanismos de venda ou disposição célere dos bens apreendidos para rapidamente entrarem em circulação e não ficarem a “apodrecer” em depósitos públicos.

Conclusão

Acreditamos que um verdadeiro combate à corrupção necessita destes mecanismos inovadores, mas já usados noutros países democráticos, como o Reino Unido, o Brasil ou a Nigéria, para ter sucesso.

É de evitar toda e qualquer imitação de Portugal. Vejam-se as dificuldades que o país tem tido com o caso Sócrates. O antigo primeiro-ministro português foi preso preventivamente por suspeitas de corrupção e branqueamento de capitais em 2014. Em 2018, ainda nem sequer começou a ser julgado. No direito, há que procurar outras latitudes para garantir a eficiência normativa.

E também acreditamos que a presente lei angolana é um labirinto confuso e antiquado que não permite um verdadeiro combate à corrupção.

A mudança legal é necessária e urgente.

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