Labirintos da Justiça: o Caso Socor-Intertransports

A economia angolana tarda em arrancar. O problema já não são os preços do petróleo, que subiram, nem a existência de uma liderança envelhecida e anquilosada. Agora há um presidente que apela a que o país ande para a frente.

O problema essencial são os pesados bloqueios ao funcionamento de uma economia normal. As instituições não funcionam, o sistema de justiça é lento, o direito é uma manta de retalhos em que o velho colonialismo se mistura com o neocolonialismo jurídico, com resultados desastrosos.

Um dos pontos essenciais do ajustamento económico necessário para Angola é a reforma da justiça e do direito. A primeira deve ser mais célere, o segundo mais eficaz.

O caso que vamos contar é paradigmático do estado pantanoso do sistema legal e judicial e da necessidade de reforma.

Em 2007, a Socor, Lda., gerida pelo comerciante Francisco Guedes, intentou uma acção contra várias entidades entre as quais se destacava a sucursal em Angola da empresa italiana Intertransportes Centre, Spa, representada por José Luís de Melo Brigham. Em causa estava o furto de vários sacos de feijão que a primeira tinha ficado de entregar a uma terceira entidade, e cujo transporte havia sido contratado com a Intertransports Centre. Por esse furto, a Socor responsabilizava civilmente a Intertransports.

Não interessando entrar nos detalhes do caso, o importante a reter é que em 2009 o Tribunal Supremo condenou a Intertransports a pagar 150 mil dólares acrescidos de juros à Socor.

Após essa condenação, as partes realizaram um acordo, que denominaram “Acordo Extra-Judicial”, nos termos do qual a Intertransports se comprometia a pagar à Socor o valor de 180 mil dólares. O acordo previa um pagamento em várias prestações e identificava a conta onde seriam feitos os pagamentos. Isto passou-se em 23 de Novembro de 2009.

A 3 de Março de 2010, o juiz do Tribunal Provincial do Lobito homologava o acordo. Por consequência, aqui tínhamos um documento com toda a força judicial. Poderemos afirmar que até aqui o direito tinha funcionado.

Acontece que a Intertransports só procedeu ao pagamento da primeira prestação, não realizando nenhuma outra liquidação, sob o argumento de que a conta para onde havia enviado a primeira transferência era uma conta pessoal de Francisco Guedes, e não da empresa Socor. A verdade é que este não é argumento para não pagar. A única formalidade que a Intertransports tinha de exigir era a quitação (recibo) do pagamento por parte da Socor.

Começam os problemas graves. A sociedade Intertransports deixa de ter actividade relevante ou activos e torna-se sócia de outra sociedade denominada Mateba, Lda. Nessa Mateba, a Intertransports detém 99,9%, segundo documentação pública de 2009.

O que se passa é o seguinte: a Intertransports é desactivada, tornando-se mera sócia da Mateba, Lda., com 99,9% do capital social. Ora, nos termos da Lei das Sociedades Comerciais, isto corresponde a uma situação de domínio (artigo 469.º da Lei n.º 01/04, de 13 de Fevereiro). Por consequência, a sociedade dominante (Intertransports) é responsável pelas obrigações da sociedade dominada (Mateba), contudo, não se podem colocar acções executivas contra a sociedade dominante quando a dominada seja a devedora. Não existe norma legal para o inverso, o que será importante para o nosso caso.

Entretanto, não obtendo pagamento da Intertransports, a Socor de Francisco Guedes recorre novamente aos tribunais, desta vez para propor a competente acção executiva contra a sucursal da empresa italiana. Estávamos em 2013. E consegue penhorar um conta bancária da Mateba para pagar a dívida.

Contudo, em 18 de Junho de 2018, vem a juíza Sónia Edna Duarte, do Tribunal Provincial de Benguela, mandar levantar a penhora, pois a acção é contra a Intertransports, e não contra a Mateba, e não se pode “atacar” contas bancárias de uma terceira entidade, como será a Mateba em relação à Intertransports.

Embora do ponto de vista formal a decisão da juíza seja correcta face à informação que aparentemente lhe foi disponibilizada, contém o germe de dois problemas que focámos no início deste texto.

Por um lado, a morosidade da justiça. A acção executiva foi proposta em 2013. Agora, em 2018, cinco anos depois, volta ao início, com a juíza a mandar que a Socor escolha outros bens da Intertransports para penhorar. O melhor, dizemos nós, é penhorar a participação na Mateba… A própria juíza tem a frontalidade de reconhecer o atraso do processo quando escreve no final da sua sentença que só decide naquela data por “excesso de processos cíveis”.

Não pode, não deve Angola imitar a sua potência colonizadora e persistir numa justiça lenta, formalista e retrógrada.

Ademais, coloca-se a questão: até que ponto tem sentido não penhorar uma conta de uma empresa por dívida de uma outra empresa que a detém em 99,9%? Deveria ser possível estender a acção executiva nestas situações. Na realidade, como vimos acima, a lei proíbe o inverso, que se demande executivamente a sociedade dominante por dívidas da sociedade dominada, mas não proíbe o contrário, que se demande executivamente a sociedade dominada por dívidas da sociedade dominante.

A verdade é que terá de existir, neste tempo de sociedades “fictícias”, “ocas” e “veículo”, mecanismos legais que permitam destapar as construções jurídicas que não correspondem a qualquer essência, mas apenas a formalidades para evitar o cumprimento da justiça.

Em resumo, temos aqui uma situação que reflecte a morosidade da justiça e a desadequação da lei actual (ou da sua interpretação estrita). É imperioso que o legislador se esforce por criar um ambiente de negócios estimulante em Angola.

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