JES: Padrinho da Corrupção Tem de Ser Ouvido

O juiz do Tribunal Supremo, Daniel Modesto Geraldes, declarou aberta a Instrução Contraditória no processo-crime que opõe o Ministério Público a José Filomeno dos Santos e Valter Filipe (antigo governador do Banco Nacional de Angola), entre outros, devido à transferência ilegal de 500 milhões de dólares do tesouro angolano. Os arguidos são acusados dos crimes de associação criminosa, peculato e branqueamento de capitais.

A Instrução Contraditória é uma fase normal em qualquer processo-crime, durante a qual, pela primeira vez, os arguidos tentam convencer um juiz de que a acusação não tem razão, apresentando os seus argumentos e provas. Depois de ouvir os arguidos e as suas motivações, o juiz decidirá se eles irão a julgamento. Ainda não é o julgamento, mas uma apreciação inicial do caso.

O juiz que está a tomar conta do processo é o conselheiro Daniel Modesto Geraldes. Este juiz ficou famoso no Namibe, em 2010, por ter presidido a um julgamento em que o seu “tio” Antonio Vissandula, juiz-presidente do tribunal do Namibe, se queixava de ter tido o seu bom nome envolvido em casos de corrupção. Mais tarde, em 2015, foi nomeado por José Eduardo dos Santos como juiz-conselheiro do Tribunal Supremo. Hoje preside à 3.ª secção da Câmara dos Crimes Comuns. É, por isso, um juiz experiente no âmbito criminal.

Agora, na apreciação do requerimento de abertura de instrução de Valter Filipe, o juiz teve de decidir se ia chamar José Eduardo dos Santos como testemunha. E optou por não chamar o antigo presidente, nos termos do artigo 216.º, n.º 3 do Código do Processo Penal. Afirma o juiz Modesto Geraldes que, “por ser pai de um dos arguidos, [José Eduardo dos Santos] não tem capacidade para depor como testemunha”, acrescentando ainda que “só assim se pode garantir princípios tão importantes como o de isenção e imparcialidade, porque, de acordo com as regras de experiência comum, um familiar tão próximo, neste caso, o pai, naturalmente, deporá em defesa do filho, ficando a credibilidade deste depoimento fragilizada à partida”.

Por razões essenciais de justiça material, discordamos desta decisão.

O que está em causa neste processo-crime não é o roubo das galinhas da vizinha de Valter Filipe. Se assim fosse, seria descabido pedir a audição do antigo presidente, que nada teria a ver com o assunto.

Está aqui a ser analisada uma decisão de transferência de elevados montantes do tesouro angolano que, em qualquer das narrativas apresentadas no processo, terá sido ordenada, em última instância, pelo presidente da República. A própria acusação afirma que toda a factualidade se desenvolveu a partir de uma intervenção de José Eduardo dos Santos, que recebeu do seu filho uma carta supostamente pertencente ao banco francês BNP Paribas na qual era solicitada uma audiência a JES para constituir um Fundo de Investimento Estratégico através de uma operação de financiamento de 30 mil milhões de dólares. José Eduardo dos Santos encarregou o ministro das Finanças Archer Mangueira de receber esses banqueiros e de desenvolver o processo.

Isto quer dizer que José Eduardo dos Santos desempenhou um papel-chave em todos os procedimentos que culminaram nas transferências. Só ele poderá explicar com propriedade porque iniciou esses procedimentos e o que esperava alcançar.

A defesa de Valter Filipe argumenta que o arguido só obedeceu às instruções do titular do poder executivo, não tendo qualquer responsabilidade em todo o procedimento.

Sabendo o centralismo legal e político que existe no funcionamento da Presidência da República angolana, este argumento é válido enquanto tal e tem de ser verificado pelos julgadores.

Assim, as declarações de JES poderiam ajudar a esclarecer o imbróglio que se passou directamente com ele e no seu gabinete.

O argumento judicial segundo o qual as declarações de JES seriam sempre parciais para proteger o filho não colhe. Juízes experientes nas contendas criminais sabem perfeitamente “ler” e desmontar os depoimentos parciais, colhendo os factos necessários surgidos no meio das várias afirmações.

E nada indica que JES não tivesse um comportamento imparcial. Ainda recentemente, um dos seus antigos apaniguados, o governador Eusébio Teixeira, do Kwanza Sul, veio a público reconhecer que a sua filha tinha agido erradamente em determinada apropriação de dinheiros públicos na Educação e deveria devolver esse dinheiro.

Ademais, a verdade é que a lei não proíbe a audição de JES enquanto pai. Na realidade, permite-a sob determinados condicionalismos especificados no mesmo artigo 216.º do Código do Processo Penal invocado pelo juiz Modesto Geraldes.

Acresce que a Constituição, no seu artigo 67.º, n.º 1, garante a todos o direito de defesa. Ora, é evidente que numa factualidade em que José Eduardo dos Santos desempenhou um papel fundamental, qualquer defesa passa por ouvi-lo. Não aceitar o depoimento de JES neste caso é limitar profundamente o direito de defesa de Valter Filipe.

Em resumo, é impossível garantir um direito de defesa adequado a Valter Filipe neste processo sem se ouvir José Eduardo dos Santos. Aliás, o mesmo acontecerá em variados outros processos.

Sejamos claros: na maioria dos processos relativos a desvio de fundos públicos, o responsável último é José Eduardo dos Santos.

Comentários