Os Procuradores da Ilegalidade

O cidadão Lucas Adolfo Gunza encontra-se em prisão preventiva há sete meses. Trata-se de mais um caso ditado por um procurador da ilegalidade, desta vez José Rodrigues Cambuta (junto do Serviço de Investigação Criminal no Comando de Divisão do Talatona). O julgamento de Lucas Adolfo Gunza deveria ter início hoje, na 14.ª Secção do Tribunal Provincial de Luanda, no Benfica. A acusação contra si, lavrada pelo Ministério Público, tem uma data anterior à entrada do seu processo em tribunal (para ser acusado) e só lhe foi comunicada três meses depois. São vários os arrepios à lei por quem deve zelar pela legalidade e protecção dos direitos e deveres dos cidadãos.

Têm-se sucedido os casos de procuradores da República que actuam à margem da lei e sem respeito nenhum pelo seu cargo de magistrados. Já reportámos o caso da procuradora Natasha Andrade, que terá utilizado o seu cargo para proteger os negócios privados do seu pai e do seu irmão, o general António Andrade e o capitão Miguel Kenehele. Também mencionámos a actuação prepotente do procurador Óscar Manuel Ribeiro no caso do garimpeiro José Manuel dos Santos, na Lunda-Norte, que foi libertado dois dias depois de termos publicado a nossa investigação. Contámos a história do procurador-geral adjunto general Adão Adriano, que recebia dinheiro no próprio gabinete de trabalho.
Porém, o procurador Cambuta supera todos. Dele também já denunciámos o papel que desempenhou na farsa que levou à detenção de cinco cidadãos (pedreiros, electricista e motorista), por terem estacionado frente a uma das residências do vice-presidente Bornito de Sousa, sem o saberem. Os cinco foram brutalmente torturados e encarcerados por inventada tentativa de assassinato do vice-presidente, que na altura se encontrava em Portugal.

Foi o mesmo Cambuta quem, diante de uma acusação “sem pés nem cabeça” contra o cidadão Mateus de Oliveira, ordenou a sua libertação, depois de dez dias de detenção injustificada, mediante pagamento de uma caução de 150 mil kwanzas, entre várias outras medidas de coacção. O cidadão foi brutalmente torturado com uma catana por agentes do SIC. Conforme então notou o tio de Oliveira, “o Ministério Público cauciona as barbaridades do SIC. É cúmplice e obriga um indivíduo detido ilegalmente e torturado a pagar uma caução para ser libertado. É um abuso”.

 

Oh, Cambuta!

Desta vez retomamos as ilegalidades do procurador José Rodrigues Cambuta no caso de Lucas Gunza, que também foi aqui noticiado.

O caso envolve uma disputa de terras e uma suposta burla. Até aqui nada de novo. Como de costume (é no mínimo estranho que seja sempre assim), é o camponês, o lado mais fraco, quem sofre acusação e é considerado responsável pela prática de crimes. De facto, as grandes empresas e as fundações ligadas aos dirigentes políticos apresentam-se sempre como vítimas, e este caso não é excepção.
Seja Lucas Gunza culpado ou inocente de um crime de burla – competirá ao tribunal julgar e decidir –,o que é verdadeiramente bizarro em todo este processo é o comportamento do procurador Cambuta.

O advogado Zola Bambi, que é também presidente do Observatório para a Coesão Social e Justiça, tem denunciado as várias peripécias e acções inaceitáveis do procurador.

 

Ameaças de morte

Tudo começou com a detenção de Lucas Gunza, efectuada com recurso a tortura de vários familiares e sem mandado de detenção, o qual apenas foi apresentado depois da detenção, na própria cela.

Recordemos o relato de Rafael Marques sobre a violência da detenção: “Um dos agentes ameaçou-me assim: ‘Se tu não mostrares onde está o teu cunhado, vamos queimar-te e vamos deitar o teu corpo onde ninguém te vai achar e vamos queimar a casa onde vive a tua família.’, conta Abel Bernardo Cambolo, de 15 anos, sobre o seu calvário às mãos dos agentes do Serviço de Investigação Criminal. Mais tarde, Abel Cambolo identificou, no comando de divisão do Talatona da Polícia Nacional, o seu torturador psicológico como sendo Edivaldo Joaquim Oliveira, o agente que comandou a operação de busca e captura de Lucas Adolfo Gunza, de 31 anos, seu cunhado.” Nunca se investigam as denúncias de tortura. É uma impunidade que tem de acabar. Se há tortura, esta tem de ser investigada e punida.

Só quando se encontrava dentro de uma cela, sem saber porquê, é que Lucas Gunza viu o mandado de detenção – um procedimento totalmente contrário à lei. Depois, o procurador, através de artifícios vários que consistiram em fazer andar os advogados de Lucas de um lado para o outro, conseguiu que o primeiro interrogatório do arguido fosse realizado sem a presença dos mesmos, que nos autos já estavam constituídos como mandatários. Ao mesmo tempo, o mencionado procurador ia contactando a família para insinuar que a libertação de Lucas dependia da resolução das questões dos bens, fazendo da prisão preventiva um meio de coacção sobre o arguido, e não uma medida de protecção da sociedade.

Por tudo isto, e por considerarem que o procurador Cambuta tratava o processo como assunto privado, não deixando ninguém ter acesso ao mesmo, os advogados Zola Bambi e Mónica Domingues interpuseram um recurso hierárquico junto do procurador-geral da República, que foi aceite. Cambuta recebeu ordens para remeter o processo. Ora, acontece que Cambuta ignorou a decisão hierárquica e continuou a tratar o processo de forma secreta, como se fosse sua propriedade privada.

Mas as bizarrias do processo não se ficam por aqui.

A acusação contra Lucas Gunza foi, entretanto, produzida. Tem data de 21 de Março de 2018. Contudo, só foi entregue aos advogados a 18 de Junho de 2018. Não se percebe o motivo de tamanha dilação temporal. Acresce que o processo apenas deu entrada no Tribunal Provincial a 11 de Abril, para ser proferida acusação, tendo sido despachado a 13 de Abril. Por isso, nem se percebe por que a acusação tem uma data anterior, além de ter o nome do arguido rasurado. São demasiados pequenos factos estranhos – como diz um velho ditado, “é nos detalhes que está o Diabo”…

O mais surpreendente é que a acusação se estriba num acto supostamente perpetrado pelo arguido a 27 de Janeiro de 2018. No entanto, o mandado de detenção emitido contra ele pela prática do crime de burla tem a data de 2 de Janeiro de 2018. Perante estes documentos, fica a dúvida: então o mandado de detenção foi emitido antes da prática do crime? Terá o procurador Cambuta dotes parapsíquicos, conseguindo adivinhar o futuro? Numa alternativa mais verosímil, o processo está eivado de lapsos e as datas estão incorrectas, sendo por isso tudo nulo e devendo Lucas ser imediatamente libertado, uma vez que já foram excedidos todos os prazos legais.

 

A prática de discriminação da PGR

Além do surrealismo que o processo, este processo torna nítido um outro aspecto: o tratamento desigual dado a diferentes arguidos. São casos arrepiantes de discriminação por parte da Procuradoria-Geral da República.

Por uma suposta burla que não ultrapassa os quinze mil dólares, Lucas Gunza está detido preventivamente há sete meses. O filho do antigo presidente da República, José Filomeno dos Santos, e o seu sócio Jean-Claude Bastos de Morais são suspeitos de burlas superiores a um bilião de dólares e ficam em liberdade. Não há um tratamento equitativo dos cidadãos. Se há razões para que Zenú e Jean-Claude Bastos de Morais fiquem em liberdade, maiores razões existem para que Lucas fique em liberdade. Se, pelo contrário, há razões para que Lucas seja preso, maiores são as razões para prender Zenú e Jean-Claude Bastos de Morais.

Afinal, a lei é igual para todos ou não é?

Comentários