O Fim da Bicefalia: Duas Interrogações

Ao sétimo mês, José Eduardo dos Santos rendeu-se. Não sabemos se é uma rendição incondicional, ou se existem compromissos assumidos pelo vencedor João Lourenço.

A realidade é que a bicefalia acabou. João Lourenço vai dominar o partido, como já domina o governo, as Forças Armadas, os serviços de inteligência e segurança, as polícias, a Sonangol, os diamantes, as principais empresas públicas e a comunicação social. Até na Universidade Agostinho Neto já implementou mudanças.

Fica a dúvida, mais para a posteridade do que para algum efeito útil, de que alguma vez tenha existido a bicefalia. Será que não foi somente um mero truque propagandístico para garantir o poder absoluto a João Lourenço?

Na verdade, vislumbraram-se indícios de bicefalia nas movimentações que antecederam a formação do Executivo após as eleições de Agosto, e também na nomeação dos governadores provinciais. De resto, muito rapidamente João Lourenço tomou as rédeas da sua presidência imperial, e quaisquer que fossem as intenções bicéfalas de José Eduardo, a verdade é que foram cilindradas inapelavelmente.

Surpreenderia a rapidez com que José Eduardo dos Santos foi apeado do poder, se não se tivesse conhecimento da sua fragilidade e impopularidade. Todos queriam ver José Eduardo e os seus filhos pelas costas, apenas tinham medo de o dizer em público. Agora, as emoções recalcadas vieram ao de cima, e José Eduardo percebeu que era detestado pelos seus próprios apaniguados. Sic transit gloria mundi, como é passageira a glória no mundo.

Finda a bicefalia, a primeira questão que se coloca é aquela com que iniciámos este texto. João Lourenço venceu José Eduardo dos Santos por K.O., levando-o ao chão, ou existiu alguma espécie de negociação de bastidores entre os dois contendores, com vista a um entendimento pacífico de transição de poder? Obviamente que, a ter havido um entendimento, este terá passado pelo “perdão” e não pela investigação às actividades de Zenú, Isabel dos Santos e outras figuras próximas de JES. Dito de outro modo, o acordo entre José Eduardo dos Santos e João Lourenço teria passado pela garantia de impunidade para os filhos do ex-presidente, uma vez que se considera – erradamente – que quanto ao próprio José Eduardo dos Santos é necessário esperar cinco anos antes de o acusar de qualquer prática criminal.

Importa, por isso, estar atento ao que acontece nos próximos tempos em relação aos processos judiciais que envolvem Zenú e que envolveriam Isabel dos Santos, a propósito da Sonangol. Será que o processo de Zenú vai ser arquivado e que o processo relativamente a Isabel dos Santos nunca vai começar?

Na prática, tratar-se-á somente de uma mudança de chefe, e a impunidade prossegue, dando assim sinal verde às práticas de corrupção? Esta é a primeira interrogação que o fim da bicefalia impõe.

A segunda inquirição é de natureza diferente, e tem que ver com a economia. A área da economia tem merecido muitos discursos e promessas de João Lourenço, designadamente a sua pretensão em ser o Deng-Xiaoping angolano e liderar o “milagre económico” no país.

Diga-se já que Lourenço criou um espírito de boa vontade nas organizações financeiras internacionais, e vive uma conjuntura favorável em termos de preço de petróleo. O importante é saber se ele conseguirá aproveitar os ventos favoráveis ou se desbaratará tudo em corrupção e roubalheira, como o seu antecessor.

Na equipa económica, ainda se vive no rescaldo da bicefalia inicial. Os titulares das pastas financeiras são do tempo de José Eduardo dos Santos, embora reciclados, e alguns transitaram mesmo directamente na mesma pasta do anterior governo, como é o caso de Archer Mangueira, o ministro das Finanças.

O discurso sobre a economia é confuso e assiste-se à proliferação de programas. Temos o Programa de Estabilização Macroeconómica iniciado em Janeiro de 2018, e que é aquele que o FMI vai acompanhar. Temos um programa de reforma do Estado, que também tem implicações económicas. Temos um Plano Intercalar de Outubro de 2017, do qual apenas menos de metade das medidas foram implementadas. Finalmente, agora surge um Plano Nacional de Desenvolvimento. São planos a mais.

Não vamos agora analisar estes programas, mas fá-lo-emos noutra ocasião. O que importa sublinhar é que, para já, reina muita indefinição na política económica: não se percebe bem quem a conduz nem que planos exactamente estão a ser executados.

Na política económica não há bicefalia, mas sim acefalia (ausência de cérebro). Convinha que houvesse uma clarificação dos rumos e das políticas, para que os agentes económicos sejam capazes de criar as suas expectativas.

Deixamos, então, duas interrogações levantadas pelo fim da bicefalia:
Houve algum entendimento no sentido de garantir a impunidade do ex-presidente e dos seus filhos?
Haverá alguma clarificação e um comando claro da política económica a partir de agora?

Comentários