Adultério, Juízes e Sobas: Arbitrariedade e Abuso de Poder

Saraiva Capolo António, de 38 anos, é um cidadão angolano, docente universitário e ex-agente da segurança de Estado, que foi envolvido num processo digno de constar num livro de Franz Kafka, de tão absurdo e bizarro. É um caso de adultério que envolve abuso de poder, violência doméstica, a dissonância entre o poder da autoridade tradicional e o poder judicial e uma acusação de tentativa de homicídio.

Saraiva tinha problemas com a sua mulher, Tatiana Oliveira, de 28 anos, segundo ele devido a interferências da sogra e de outros familiares. Entre estes, destacava-se o tio da mulher, chamado Sebastião Artur, que é juiz do Tribunal Provincial do Kwanza-Sul. Pelo meio surgiram também disputas de feitiçaria, com Sebastião acusado de ser bruxo e drogado pela sogra, o que sempre refutou. Se estas disputas não são originais – ter problemas com a mulher por causa da sogra acontece a muitos… –, já tudo o que vem a seguir é, no mínimo, rocambolesco. Saraiva enfrenta agora a acusação de tentativa de homicídio e aguarda julgamento.

Aparentemente, a sogra não gostava de Saraiva. Este alega que a sua esposa levava o amante – Katumbira Lusala, de 24 anos, recepcionista e estudante universitário – para casa com a complacência da sogra, além de ter feito com que a filha saísse da morada de família e retirado a maior parte dos bens de Saraiva. O tio da mulher, juiz, terá mandado que Saraiva levasse uma sova se este não deixasse de vez a mulher.

Em queixa apresentada à Procuradoria-Geral da República a 16 de Outubro de 2016, Saraiva denunciou que o juiz alegadamente deu autorização aos seus familiares para lhe baterem “com ferro na cabeça, porque eu resolvo este problema, sou juiz provincial”. Já em 2015, Saraiva tinha levado uma valente sova dos familiares de Tatiana Oliveira. Queixou-se às autoridades judiciais, mas os agressores foram absolvidos pelo Tribunal Provincial do Kwanza-Sul.

Saraiva fez queixa de tudo isto, acusando o juiz e a sua família. Entretanto, coloca-se a questão do direito da mulher. Envolve-se noutra relação e não quer viver com o Saraiva. O seu direito também não é respeitado.

Revoltado, Saraiva fez exposições e requerimentos ao Ministério Público, mas ninguém lhe ligou nenhuma.

Finalmente, resolveu procurar a ajuda do soba Cungula, do município do Seles e membro da Associação dos Sobas e Autoridades Tradicionais. Daqui nasce a origem formal do processo-crime de que é alvo. O soba Cungula industriou-o no sentido de obter provas irrefutáveis do envolvimento da sua mulher com o amante Katumbira. Tinha de encontrá-los em “flagrante delícia” a namorar e tinha de “retirar um bem ou aleijar o Katumbira e obter, como prova do crime, prova de sangue para a prática do mukoya”.

Mukoya, segundo o direito costumeiro, é o julgamento realizado pelo soba para que o amante, provando-se o “crime de adultério”, pague uma multa ao ofendido.

A 25 de Outubro de 2016, Saraiva encontrou Katumbira a namorar com Tatiana e “picou-o” com uma chave de fendas. De seguida, foi apresentar-se às autoridades policiais, tendo confessado o crime, esperando, assim, a intervenção do soba e a resolução do caso.

Temos assim um docente universitário que confia no direito consuetudinário, mesmo tendo consciência de que a prática aconselhada constitui crime de ofensa corporal.

Duas semanas depois, a 7 de Novembro de 2016, “19 elementos da família do ofendido e 16 elementos da acusação reuniram-se na Escola 411, na regedoria do Chingo, município do Sumbe, com o soba Candumbo e sua corte, para o mukoya”.

No encontro, segundo depoimentos recolhidos e a acta do soba, Katumbira começou por negar o seu envolvimento com Tatiana. O soba perguntou-lhe qual era a origem das feridas e Katumbira não teve alternativa senão explicar que tinha sido “picado” por Saraiva, que o tinha encontrado com Tatiana.

A 21 de Novembro de 2016, Katumbira Lusala escreveu ao procurador da República junto do Serviço de Investigação Criminal no Sumbe, tendo referido o encontro com o soba Candumbo. “Fomos ouvidos em audiência, tudo para o esclarecimento do ocorrido, com o intuito de se pôr fim a esta controvérsia; chegou-se a conclusão de que se devia retirar a queixa, para garantir harmonia de ambas as partes.”

De facto, o soba tratou o assunto. Dada a demora em resolver-se o caso, o regedor municipal do Sumbe realizou mais um encontro, a 15 de Janeiro de 2017, em que participaram “16 elementos da parte ofendida e 17 elementos da parte da acusação e vários sobas”. Nesse mesmo dia, segundo a acta, Katumbira devia pagar 500 mil kwanzas de indemnização a Saraiva.

Segundo o termo de compromisso assinado a 23 de Janeiro de 2017, sob tutela do regedor municipal Morais Candumbo, mais conhecido como soba Candumbo, Katumbira Lusala subscreveu o seguinte compromisso: “a) reconhecimento e aceitação da acusação [de adultério]; b) o pagamento de 500 mil kwanzas, por abuso de confiança; c) a retirada da queixa junto da investigação criminal e procuradoria.”

O assunto parecia resolvido.

Porém, em Abril de 2017 o Ministério Público acusa Saraiva de tentativa de homicídio. Portanto, na prática, a intervenção do soba só serviu para levar Saraiva a confessar um suposto crime.

A mãe e a irmã de Katumbira acompanharam-no ao soba Candumbo, para o informar de que tinham dificuldades em retirar a queixa, como resultado do encontro entre o jovem “amante” e o juiz Sebastião.

À parte os dramas pessoais aqui envolvidos, esta história produz as algumas lições.

Primeiro, as crises conjugais não devem ser resolvidas pela via da violência doméstica.

Segundo, há falta de diálogo sobre a necessidade de harmonização entre o direito consuetudinário e os direitos consagrados na constituição – entre o tradicional e o moderno.

Terceiro, o caso revela o mau funcionamento das instituições do Estado, sobressaindo a falta de isenção do poder judicial, com interferências de interesses pessoais e familiares nas iniciativas do tribunal. Assim, a impunidade é lei e nota-se o descaso institucional sobre o poder da autoridade tradicional e do direito consuetudinário.

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