A Teoria da Fraude Eleitoral em Angola

Mais uma vez, a sociedade angolana, demonstrou as suas qualidades cívicas e colectivas, exercendo pacificamente o seu direito de voto nas eleições de hoje. Notou-se também, um pouco por todo o país, considerável grau de abstenção, com muitos angolanos a não acreditarem nem no processo eleitoral, nem nas promessas dos candidatos.

Todavia, para que o voto de cada cidadão efectivamente conte e as eleições sejam a verdadeira celebração do poder soberano do povo – os eleitores – é fundamental abordar e resolver os impedimentos à transparência do processo eleitoral.

A fraude eleitoral numa sociedade moderna e debaixo do foco de uma boa parte do mundo, como acontece em Angola, não é um processo artesanal e óbvio, como seria no século passado ou em outros países africanos mais recônditos e sem aspirações a serem potências regionais e ao reconhecimento global.

Em Angola, a fraude eleitoral acontece através de um tempo longo, com recurso a sofisticados procedimentos, envolvendo diferentes fases e estratégias.

Vamos proceder à sua classificação e análise.

1) A primeira estratégia da fraude eleitoral é o controlo do enquadramento.

Controlo do enquadramento quer dizer que o partido do governo tem domínio efectivo sobre todas as instituições que participam no processo eleitoral: Tribunal Constitucional, Comissão Nacional Eleitoral, Ministério da Administração do Território e Comunicação Social. Portanto, o controlo legal, o controlo operacional e o controlo da liberdade de expressão dependem do partido do governo.

O Tribunal Constitucional, que tem a última palavra nos diferendos político-eleitorais, é composto por 11 juízes. Destes, quatro (incluindo o presidente do Tribunal) são indicados pelo presidente da República, e quatro pela Assembleia Nacional, onde o partido do governo tem dois terços dos deputados. Assim, pelo menos oito em 11 juízes foram designados pelo partido do governo, sem qualquer contraditório, audiência confirmativa ou escrutínio público, não estando assegurada qualquer imparcialidade do mais alto tribunal do país.

A Comissão Nacional Eleitoral (CNE) é responsável pela organização do processo eleitoral e é composta por 17 membros, dos quais 16 são designados pela Assembleia Nacional, por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções, sob proposta dos partidos políticos e coligações de partidos políticos com assento parlamentar, obedecendo aos princípios da maioria e do respeito pelas minorias parlamentares. Quer isto dizer que a maioria de doi terços que o partido do governo detém na Assembleia se repete na CNE, não sendo esta mais do que um mini-parlamento onde predomina a vontade da maioria.

O Ministério da Administração do Território (MAT) é um órgão auxiliar do presidente da República, não detendo qualquer autonomia. Ficou encarregado do registo eleitoral (o que consideramos inconstitucional, mas não foi assim entendido pelo Tribunal Constitucional).

Sobre este registo eleitoral fica uma dúvida elementar: segundo o Instituto Nacional de Estatística, a população de Angola em 2017 andará na ordem dos 28 milhões de pessoas. Ora, os eleitores registados são cerca de nove milhões. Onde param os restantes 19 milhões? Têm todos menos de 18 anos?

Os elementos estatísticos disponíveis apontam para que a população abaixo dos 18 anos ronde um máximo de 50 por cento. Quer isto dizer o seguinte: os eleitores registados deveriam ser, no mínimo, 14 milhões de pessoas, e não nove milhões de pessoas. Por consequência, haverá cerca de cinco milhões de pessoas reais que não têm sequer a possibilidade de votar.

Finalmente, refira-se a comunicação social. Com excepção dos meios digitais, mas cujo raio de acção se limita à população com acesso à internet, toda a restante comunicação social é dominada, directa ou indirectamente, pelo governo. Como de costume, isso reflectiu-se claramente na cobertura da campanha.

Segundo dados recolhidos até ao dia 28 de Julho de 2017, o tempo dedicado pelos principais órgãos de comunicação social a cada um dos partidos políticos era o seguinte:
Televisão Pública de Angola (TPA):
MPLA: 190 min. (61,9%)
UNITA: 41 min. (13,1%)
CASA-CE: 38 min. (12,2%)
PRS: 17 min. (5,4%)
FNLA: 16 min. (4,8%)
APN: 11 min. (3,5%)

TV Zimbo:
MPLA: 184 min. (64,8%)
UNITA: 37 min. (12,8%)
PRS: 28 min. (9,7%)
FNLA: 16 min. (5,5%)
CASA-CE: 12 min. (4,1%)
APN: 11 min. (3,9%)

Rádio Nacional de Angola (RNA):
MPLA: 145 min. (58%)
UNITA: 36 min. (14,4%)
PRS: 28 min. (11,2%)
FNLA: 17 min. (6,8%)
CASA-CE: 13 min. (5,2%)
APN: 11 min. (4,4%)

Não há quaisquer dúvidas: estes números são inconstitucionais e esta prática representa um desrespeito atroz pela norma fundamental angolana.

Verificamos, deste modo, que o partido do governo tem o completo domínio do enquadramento eleitoral. A aplicação da lei, a organização das eleições e a divulgação eleitoral, todos estes elementos são controlados pelo partido do governo.

 

2) O segundo aspecto da fraude eleitoral é a micro-obstaculização.

Micro-obstaculização quer dizer, em português corrente, “colocar grãos de areia na engrenagem”, isto é, ir levantando pequenos obstáculos que evitem o escrutínio efectivo das eleições, desmobilizem os eleitores, criem preguiça ou desmotivação, de modo que só os disciplinados e “arrebanhados” membros do partido do governo se dirijam aos locais de voto, seja para votar, seja para controlar os votos.

Nesta categoria incluem-se os atrasos na divulgação dos cadernos eleitorais, as dificuldades na creditação de delegados das listas da oposição, os “erros” nas listas, colocando-se pessoas a votar a mil quilómetros de distância de suas casas, entre outros pequenos detalhes que têm vindo a público no processo eleitoral.

3) O terceiro aspecto é o controlo do núcleo essencial do voto.

O núcleo essencial do voto ocorre nas assembleias de voto. E, segundo a Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais, o momento-chave no apuramento dos resultados ocorre nas próprias assembleias de voto. É nestas que se fazem as contagens e se verificam os resultados. Esta é a base. Ora, não há fiabilidade neste âmbito.

Na realidade, uma auditoria que a Deloitte realizou ao processo eleitoral não abrangeu “os sistemas de suporte às assembleias de voto (tablets, respectiva rede de comunicações e Centro de Atendimento ao Tablet) [que] não se encontram no âmbito da nossa revisão da Solução Tecnológica, pelo que não foram considerados no nosso trabalho”. Isto quer dizer o seguinte: o coração do processo eleitoral não foi auditado. O local onde os votos reais são efectivamente colocados, onde as pessoas exercem o seu direito, não foi auditado. Apenas se começa a auditoria nos Centros de Processamento Municipais.

Em termos matemáticos, o que acontece é que a base não é fiável, logo, tudo o resto pode estar errado. Exemplifiquemos: a força política A pode ter 10 votos na Assembleia de Voto X, mas não há nada que impeça que surja com 20 votos no Centro de Processamento Municipal. E será essa a base: 20 votos, e não 10. Os 20 votos serão depois certificados ao longo do sistema até ao final, mas estão errados, porque a base era 10. Trata-se de um processo de certificação do logro. Este ponto basta para desqualificar o processo: se a base do sistema não é fiável, como se pode afirmar que o sistema é fiável?

4) O quarto e último aspecto essencial é o controlo das tecnologias de informação (TI).

Através do controlo dos sistemas de TI – o que o partido do governo fez através da contratação de duas empresas de sua confiança, já envolvidas em anteriores processos eleitorais e suspeitas de fraude correlacionadas (Indra e Sinfic) –, consegue-se controlar o processo eleitoral final da forma mais simples.

A Sistemas de Informação, Indústria e Consultoria (Sinfic) forneceu a tecnologia para o mapeamento dos eleitores em todo o país e a sua distribuição por assembleias de voto, através dos cadernos eleitorais. Para o efeito, a Sinfic obteve um contrato de 275 milhões de euros, adjudicado pela CNE. Esta empresa, que tem sede em Portugal mas está efectivamente ligada à Casa de Segurança do PR, é problemática. Primeiro, está a atravessar um Processo Especial de Recuperação (PER), uma espécie de mecanismo para sobreviver a uma situação de falência. Segundo, desde 2012 tem a sua sala de operações no complexo do Palácio Presidencial, na cidade alta.

O chefe da Casa de Segurança do PR, general Manuel Hélder Vieira Dias “Kopelipa” foi o “comandante” da campanha eleitoral do MPLA e de João Lourenço.

Por outro lado, a Sinfic tem providenciado a solução tecnológica para o registo eleitoral, sob responsabilidade do Ministério da Administração do Território, desde 2006. Por essa via, a Sinfic controla toda a base de dados do processo eleitoral.

Por sua vez, a Indra, uma empresa espanhola, é responsável, desde 2008, pela produção de material de votação e da solução tecnológica para o apuramento e escrutínio dos resultados eleitorais. A Indra também é uma empresa da esfera de influência do general Kopelipa.

Em suma, são estes os quatro passos (ou controlos) que existem para consumar uma sofisticada fraude nas eleições angolanas:
1) Controlo do Enquadramento;
2) Micro-obstaculização;
3) Controlo do núcleo base da votação;
4) Controlo das tecnologias de informação.

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