Ainda as Contas da Sonangol

A publicação do artigo sobre as contas da Sonangol no Maka Angola gerou muita discussão, o que demonstra a vitalidade crescente da sociedade civil angolana.

Agradecemos os elogios, mas vamos debruçar-nos sobre as críticas, que consistiram maioritariamente em chamarem-nos matumbos ou ignorantes da coisa contabilística.

Tentaremos aqui entrar em maior detalhe, para explicitar o nosso ponto de vista da forma mais objectiva possível.

 

Os critérios ditos científicos a que as contas obedecem

Em primeiro lugar, foi-nos asseverado que a apresentação das contas da Sonangol obedecia a critérios “científicos” inabaláveis e insusceptíveis de crítica.

Na verdade, não é assim. Não existe em Angola qualquer parâmetro legal ou técnico que seja imperativo no que se refere à apresentação de contas consolidadas de um grupo com a magnitude da Sonangol. Nessa medida, os critérios das demonstrações financeiras foram autonomamente determinados pelo Conselho de Administração (CA) da Sonangol.

Para que não haja dúvidas, leiam-se as notas às demonstrações financeiras de 2016 (página 14):

“As presentes demonstrações financeiras consolidadas e respectivas notas foram preparadas de acordo com os princípios e políticas contabilísticas definidas pelo Conselho de Administração. Apesar de não serem preparadas de acordo com um normativo contabilístico geralmente aceite, tomam por referência as melhores práticas previstas tanto no normativo contabilístico nacional, como nas Normas Internacionais de Relato Financeiro (IFRS) em vigor. Esses princípios e políticas contabilísticas são integralmente explanados ao longo das notas 2 e 3 do presente Relatório e Contas.” (sublinhado nosso).

Não quer isto dizer que os critérios adoptados pelo CA estejam errados. Também não quer dizer que estejam certos. Representam escolhas, opções que, no fundo, obedecem a objectivos políticos. Por consequência, não se afirmar que as contas representam uma qualquer norma jurídica ou técnica “gravada na pedra” e à prova de críticas.

Portanto, bem se vê que é o CA que escolhe o enquadramento e os critérios de elaboração e apresentação das contas. Isto que fique claro.

 

A demonstração de resultados

Analisemos agora as demonstrações de resultados propriamente ditas.

As demonstrações de resultados têm como objectivo evidenciar os resultados (lucros ou prejuízos) obtidos na actividade desenvolvida pela empresa num determinado período, e contêm vários indicadores, a saber: os resultados operacionais que dizem respeito aos custos e proveitos obtidos na actividade principal da empresa; os resultados financeiros que mostram os custos e os proveitos decorrentes das decisões financeiras e dos investimentos financeiros da empresa; os resultados extraordinários; e os resultado líquidos, que são o resultado final depois de pagos os impostos.

Para se perceber o real sentido e dimensão daquilo que uma empresa alcançou num ano temos de analisar as várias rubricas e perceber qual é a tendência geral. Não é admissível que se foque um único indicador.

Entre 2015 e 2016, a Sonangol registou a seguinte evolução:

i) As vendas e prestações de serviços subiram de 2.204 mil milhões de AOA para 2.451 mil milhões de AOA.

Como referimos no anterior artigo, foi esta a rubrica mais positiva no ano de 2016. Houve um aumento das vendas, que resultou essencialmente de:

– Petróleo bruto em contratos de associação;

– Gasolina;

– Gasóleo.

Foi sobretudo nestas três rubricas que a Sonangol aumentou as suas vendas, que por sua vez aumentaram os resultados operacionais  (Quadro 22, Notas às Demonstrações Financeiras, p.96).

Isto confirma a nossa tese de que existe uma ligação directa entre as oscilações do preço do petróleo nos mercados e o aumento do valor das vendas.

Acresce, como veremos adiante, que a subida do dólar face ao kwanza teve influência em alguns resultados negativos. Ora, o reverso da medalha é que essa mesma subida poderá ter tido influência nos proveitos, caso estes tenham sido pagos em dólares. Portanto, no mínimo, o aumento dos proveitos na rubrica “Petróleo bruto em contratos de associação” poderá estar ligado à eventual relação entre a subida do dólar e a ligeira alta do petróleo em 2016. Esta é uma hipótese de trabalho que não deve ser descartada.

ii) De um modo geral, todos os outros itens sofrem uma evolução negativa, designadamente:

– As entregas ao Estado das vendas da “Concessionária” diminuíram ligeiramente;

– Os custos da actividade extractiva aumentaram. Alegadamente, esse aumento deveu-se ao efeito da desvalorização cambial do kwanza face ao dólar (Quadro 27, p. 99). Não sabemos qual foi o seu impacto quantitativo, pois não temos os números de referência. Refira-se que uma gestão financeira atenta poderia ter utilizado técnicas de hedging, por exemplo utilizando futuros ou opções cambiais que minimizassem o impacto das variações dólar-kwanza.

– Os custos com o pessoal aumentaram. Alegadamente, esse aumento deveu-se ao efeito da desvalorização cambial do kwanza face ao dólar (Quadro 28, p. 99). Não sabemos qual foi o seu impacto quantitativo, pois não temos os números de referência.

– As amortizações também aumentaram.

iii)           Os resultados operacionais aumentaram de 58 mil milhões de AOA para 155 mil milhões de AOA.

iv) Já os resultados financeiros passam de 112 mil milhões positivos para 54 mil milhões negativos. Esse número é explicado basicamente através da rubrica Provisão para Aplicação Financeira, que regista as variações negativas do investimento no BCP e nos Fundos de Investimento Energy Found I e II e Gateway. Neste ponto, há que enfatizar o desastre financeiro que foi o investimento da Sonangol no BCP de Portugal. Não se compreende por que razão a Sonangol continua a aumentar o capital no BCP.

v) Os resultados líquidos antes de impostos diminuíram de 105 mil milhões para 97 mil milhões e depois de impostos de 47 mil milhões para 13 mil milhões. Aqui, alguns comentadores quiseram corrigir-nos, dizendo que a quebra não tinha sido de 360%, mas sim de 72%. O ponto é o seguinte: o valor reduzido corresponde a uma retirada de 72% do valor de 2015, originando um montante em 2016 que é, em termos absolutos, 360% menor que o anterior.

Analisando com este detalhe as contas apresentadas, o que se pode concluir é que há uma forte influência da evolução do preço do petróleo e da desvalorização do kwanza face ao dólar.

Contudo, não verificamos qualquer viragem, nem qualquer demonstração de que o CA de Isabel dos Santos tenha obtido resultados miraculosos .

Temos uma empresa pouco eficiente, com muito maus investimentos do passado que pesam nas contas, e não se vislumbram ainda efeitos de qualquer gestão milagreira. Mas como seria isso possível em apenas seis meses? Quantos anos demorou Jack Welch a salvar a General Electric?

Perímetro de consolidação

Outro tema que nos mereceu atenção foi o do perímetro de consolidação. O perímetro de consolidação foi alterado de 2015 para 2016. Na nossa opinião, a alteração de perímetros faz de qualquer comparação de contas anuais um exercício difícil. Os críticos asseveraram que assim não era, porque em relação a cada rubrica eram apresentados os números de 2015 e 2016, possibilitando assim uma comparação. Ora, isso não é certo. Os números que são apresentados para 2015 resultam de um perímetro de consolidação A. Os números de 2016 resultam de um perímetro de consolidação A+B. Daqui deriva que estamos a comparar realidades diferentes e não a evolução da mesma realidade.

Vejamos de novo as notas, agora no que se refere ao balanço, rubrica Reservas e Resultados Transitados (p. 80):

“A linha Novas inclusões no perímetro de consolidação representa as empresas participadas do Grupo, que por decisão do Conselho de Administração passaram a ser consolidadas pelo método integral no exercício de 2016 e incluem os montantes de 76.570.525 milhares de AOA referentes a Sonils e Inloc Limited, e 15.049.148 milhares de AOA referentes as empresas do Grupo responsáveis pela comercialização de petróleo bruto e outros produtos relacionados nos mercados internacionais (Sonangol Limited, Sonangol Asia, Sonangol Hong Kong Limited, Sonangol USA) e Solo Properties.”

É também de realçar que:

“Por deliberação do Conselho de Administração o Grupo passou a incluir nos seus registos, com referência ao exercício 2016, os interesses participativos detidos nos blocos FS e FST com participações de 80% e 63,67%, respectivamente. Esta decisão explica o montante de 92.607.296 milhares de AOA apresentado na linha Incorporação dos Blocos FS/FST. Apesar de o Grupo deter interesses participativos nestes blocos, estes encontravam-se omissos dos registos contabilísticos. O impacto acima apresentado inclui, igualmente, o reconhecimento de um saldo a receber do Estado de Angola por pagamentos efectuados com base nas receitas geradas por estes Blocos.”

É assim claro que a materialidade do Grupo Sonangol em análise no ano de 2016 é diferente da do Grupo Sonangol em análise no ano de 2015.

 

Cash calls e aumento da dívida

Há ainda que referir um outro aspecto referente ao efeito do não pagamento de cash calls nas contas. Vários comentadores disseram que vigora na contabilidade da Sonangol o princípio da especialidade, que prescreve que os proveitos e os custos sejam reconhecidos quando obtidos ou incorridos, independentemente do seu recebimento ou pagamento, devendo incluir-se nas demonstrações financeiras dos períodos a que se referem.

De facto, o CA assim determinou:

“Os custos e proveitos são registados de acordo com o princípio de especialização do exercício, pelo que os mesmos são reconhecidos à medida que são gerados, independentemente do momento em que são recebidos ou pagos. As diferenças entre os montantes pagos ou recebidos e os correspondentes custos e proveitos são registadas na conta de ‘Outros activos correntes’ e ‘Outros passivos correntes’, consoante as diferenças correspondam a um direito ou a uma responsabilidade do Grupo Sonangol.” (sublinhado nosso)

Analisando o passivo, verificamos que as contas a pagar aumentaram de 844 mil milhões de AOA para 1.151 mil milhões de AOA, e a de “outros passivos” de 85 mil milhões para 104 mil milhões. Mais 36% e 22%, respectivamente. É um aumento do passivo muito relevante. Aliás, o passivo aumenta de 3.817.645.377.652 AOA para 4.372.574.985.567 — um aumento de 14,5%, sensivelmente.

 

Em resumo, não existem dúvidas, mas sim certezas de que a dívida da Sonangol aumentou muito significativamente em 2016.

Contudo, em relação aos cash calls que ainda não foram pagos, admitimos que possam não estar sequer inseridos no passivo, pela simples razão de não serem reconhecidos pelo CA. Em Outubro de 2016, quando surgiram as primeiras notícias sobre esta questão, o CA da Sonangol emitiu um comunicado dizendo que tais solicitações estavam em “análise”. O que isto quer exactamente dizer, não se sabe. Teoricamente, podem ter ficado eternamente em análise e, dependendo dos procedimentos internos da Sonangol, nunca ter dado entrada na contabilidade…

O principal objectivo deste texto — que reconhecemos ser maçador — é partilhar com o público informação e elementos de discussão sobre um tema essencial para o futuro de Angola, como é o da Sonangol.

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