A Reivindicação dos Juízes

A 26 de Maio de 2017, entrou no Tribunal Provincial da Comarca de Luanda um requerimento da Associação dos Juízes de Angola, que representa mais de 80 por cento dos juízes angolanos, com vista ao procedimento de uma “notificação judicial avulsa” à República de Angola nas pessoas dos seus ministros da Justiça e das Finanças.

O juiz Adalberto Gonçalves, da Associação de Juízes de Angola, confirma ao Maka Angola a veracidade do documento que circula nas redes sociais, mas abstém-se de fazer quaisquer declarações sobre o mesmo.

“Não podemos vazar documentos para as redes sociais. Não é da nossa responsabilidade. Pedimos ao tribunal que proceda à notificação avulsa e devemos aguardar a resposta da outra parte [ministro da Justiça, Rui Mangueira]”, refere o juiz.

Em termos processuais, esta notificação judicial avulsa é um instrumento muito simples que permite comunicar por via judicial um facto a determinada pessoa.

O pedido dos juízes é cristalino: que a Lei seja cumprida. A sua notificação comunica tão e somente ao ministro das Finanças e da Justiça que têm de cumprir a lei.

Invocam os juízes angolanos que variados subsídios legalmente previstos e outros instrumentos necessários para realizar o seu trabalho não são postos à disposição pelo poder político.

Segundo a descrição dos juízes, não vem longe o dia em que estarão a viver em casas sem luz e sem água, e em que não poderão dirigir-se para o tribunal, por não terem carro nem qualquer outro meio de deslocação.

O quadro de ilegalidades que os juízes traçam quanto ao tratamento que recebem do Estado é chocante.

Não esqueçamos que os juízes presidem a um órgão de soberania: os tribunais. Nessa medida, o seu tratamento deveria ser equitativo e proporcionalmente equivalente aos dos deputados. No entanto, enquanto compra carros topo de gama (Lexus LX 570) para os deputados, no valor de 78 milhões de dólares, e Jaguares para os juízes do Tribunal Constitucional, o Estado manda que os juízes andem de carroça!

Devemos congratular a Associação dos Juízes por esta iniciativa. Trata-se de uma lição para os outros poderes sobre a vivência num Estado Democrático de Direito. Uma lição e um exemplo. Quando há insatisfação, quando há conflito, é necessário recorrer aos tribunais. Os conflitos não se resolvem com a polícia e cães na rua, com proibições absurdas, nem com guerra e violência. A resolução dos conflitos faz-se nos tribunais. Essa é a marca das civilizações avançadas.

Contudo, para que os tribunais funcionem e resolvam os conflitos, os juízes têm de ser imparciais, independentes e obter as condições materiais para o exercício das suas funções.

Não existe independência da magistratura quando esta tem de pedinchar ao poder político míseros tostões para a sua sobrevivência. Manter a magistratura à míngua, sem saber quando receberá um subsídio, nem quando verá respeitado um determinado direito, é uma forma de o governo controlar os magistrados: “Se te portas bem, recebes. Se te portas mal, não recebes.” É aliás por esta razão que a Constituição dos Estados Unidos impede que os salários dos juízes sejam diminuídos (artigo III, secção 1ª).

Não há juízes independentes sem liberdade económica e sem condições materiais para o exercício da sua profissão.

Além dos vários problemas mencionados no requerimento judicial, existem outros que demonstram de forma gritante a falta de condições materiais para o exercício desta função constitucional de soberania.

Conforme dados providenciados ao Maka Angola por um juiz, são exigidas aos juízes determinadas cifras semestrais por cada tipo de jurisdição – cível, crime, família, menores, marítimo e contencioso aduaneiro e fiscal. Essas cifras financeiras servem para efeitos de avaliação do desempenho da função – sob pena de obterem resultado “suficiente” e, em consequência, de se lhes instaurar um processo disciplinar. O Ministério da Justiça não leva em conta as reais condições de cada tribunal, o que faz com que os magistrados se vejam impossibilitados de fazer um estudo aturado das matérias dos casos a julgar.

Afirmam os magistrados judiciais que, desde 2013, se vêem na obrigação de custear as despesas com o material de trabalho. Concretamente: papel, tinteiros, fotocópias das folhas processadas (com timbre dos vários modelos usados nos tribunais), deslocações dos oficiais de justiça para efeitos de citações e notificações, compra de telefones celulares e um plano mensal de recarga para auxiliar nas citações/notificações dos advogados e utentes, combustível para os geradores (nas salas em que estes existem).

Sob condição de anonimato, um juiz partilha com o Maka Angola um caso paradigmático: desde Outubro do ano passado, a sala do Julgado de Menores, sita no Zango 3, em Viana, está sem energia eléctrica regular no período diurno, em horário de expediente. Tal impossibilita que os magistrados possam desempenhar cabalmente as suas funções, obrigando-os a redigir à mão as audiências, designadamente interrogatórios, julgamentos, instrução processual, inquéritos sociais… O gerador encontra-se avariado. Acresce que, devido à distância, os funcionários que lá trabalham fazem-se transportar numa das viaturas da instituição, cujo combustível e manutenção é suportado a suas expensas.

O quadro que os magistrados judiciais descrevem quer no requerimento da notificação judicial avulsa, quer em exposições informais sobre a situação é desolador.

Um país que não dá condições aos seus juízes é um país sem democracia.

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