Zenú e os Esclarecimentos sem Fundo Soberano

O Fundo Soberano de Angola (FSDEA), presidido por José Filomeno dos Santos “Zenú” publicou no seu website uma “nota” sobre a investigação do Maka Angola a propósito da construção de um porto de águas profundas em Cabinda, o Porto de Caio.

Tratando-se embora de uma peça de comédia, não deixa de merecer a nossa atenção.

A “nota” começa por dizer que o “jornalista do Maka Angola recusou-se a publicar as respostas que o FSDEA deu às suas questões no dia 1 de Março de 2017”. Ora, acontece que essas respostas são como o Godot do teatro do absurdo de Beckett: nunca chegaram.

Há dias, ao pesquisarmos o portal do FSDA, por mero acaso notámos a publicação da referida “nota para o website [do Fundo]”, datada de 16 de Março passado.

O Fundo mente compulsivamente ao afirmar que nos respondeu. De qualquer modo, os esclarecimentos publicados no website do FSDEA não modificam os factos, pois não passam de um conjunto de letras em frases sem qualquer substância.

Vejamos em detalhe:

1 – O Fundo Soberano confirma que através de um outro seu fundo (private equity) adquiriu acções na Caioporto S.A., no valor de 180 milhões de dólares. Há desde logo aqui uma incongruência: segundo o decreto presidencial n.º 238/16, de 21 de Dezembro, o valor do Projecto do Novo Porto do Caio – cujo objecto é o licenciamento, planeamento, concepção, remodelação, engenharia, construção e aprovisionamento do referido porto, adjudicado à empresa chinesa China Road and Bridge Corporation – é de 831.994.725,75 dólares, dos quais o Estado Central assegura directamente 85 por cento. Portanto, haveria ainda 15% por garantir, ou seja, cerca de 124 milhões de dólares. Ora, entre 180 milhões e 125 milhões há uma diferença de 56 milhões de dólares. Logo, não se percebe por que razão é necessário mais dinheiro, nem de onde deriva este valor de 56 milhões de dólares. Anotemos para já esta incongruência, e procuremos uma explicação ao longo do texto.

A primeira afirmação do Fundo apresenta um “buraco” de 56 milhões de dólares.

2 – O Fundo Soberano afirma que o projecto está a ser desenvolvido com base num “contrato de Build, Operate and Transfer (Construir, Operar e Transferir)”. Neste tipo de contrato, de acordo com os termos de referência estabelecidos pelo Banco Mundial, o operador privado financia, detém e constrói a instalação ou o sistema, e opera-os comercialmente durante o período do projecto, após o qual a instalação é transferida para a autoridade. De facto, era assim que o Projecto do Novo Porto do Caio estava definido em 2012. Mas não é isto o que acontece em 2016/2017. O Estado (e não o operador privado) assegura o financiamento em 100 por cento (directa e indirectamente). Portanto, é rotundamente falso que ainda se possa falar num contrato BOT. Foi, mas já não é. E este é o problema grave que identificamos neste projecto: tratava-se de uma parceria público-privada, em que a parte privada arranjava o financiamento e a parte pública garantia as receitas. Agora, é um empreendimento estatal, em que o Estado e sobretudo os chineses é que asseguram o Projecto.

A segunda afirmação do Fundo é falsa. Já não há materialmente nenhum contrato BOT.

3 – A nota do Fundo Soberano afiança que o Projecto “irá gerar receitas financeiras elevadas para o Estado e para o FSDEA durante o período de operação do seu porto de águas profundas”. Que receitas? Se repararmos, o artigo 3.º do decreto presidencial n.º 177/12, de 14 de Agosto, que nesta parte se mantém em vigor, atribui as receitas da exploração do Porto à Caioporto e não ao Estado. O FSDEA poderá receber algo dos seus 15 por cento, e nada mais.

A terceira afirmação do Fundo é 85 por cento falsa.

4 – Depois diz-se que “foram realizadas diversas análises sobre a sua viabilidade financeira para o Fundo Soberano de Angola”. Que análises? Onde estão? Quem as fez?

A quarta afirmação do Fundo não está comprovada.

5 – Tentam-se “inventar“ outros custos, como “a operação e transferência do complexo portuário” e “custos de pré-construção, pré-operação e outras despesas não relacionadas com a construção, tais como a gestão do porto e das actividades relativas ao porto seco, zona de reparação naval, zona industrial e zona franca”. Com estes “pré-custos” procura-se justificar a necessidade dos 56 milhões de dólares acima referidos (ver ponto 1). Mas qual é a relação? Que transferência de complexo portuário já se fez que importe custos? E que outras despesas são essas? Onde estão os comprovativos? E então o famoso Jean-Claude Bastos de Morais nem um cêntimo investiu desde 2012? Afinal o que já se gastou? Onde está a substância? O Fundo não dá resposta, lança umas palavras como areia para os olhos, mas não consubstancia nada.

Na quinta afirmação misturam-se “alhos com bugalhos” e fala-se de custos não comprovados ou a realizar no futuro.

Do ponto de vista intelectual, esta “nota” do Fundo Soberano é uma fraude.

 

Jean-Claude Bastos de Morais, o amigo e sócio de Zenú.

6 – Falemos agora dos pagamentos à Quantum Global. O Fundo confirma esses pagamentos e justifica que é necessário contratar especialistas para “a realização de estudos de viabilidade económica e financeira sobre oportunidades de investimento em ramos ou projectos específicos, o desenvolvimento e instalação de sistemas informáticos para controlo dos investimentos e gestão interna, as taxas associadas à gestão da carteira de investimentos nos mercados financeiros e as relativas a contratos de gestão celebrados por subsidiárias do FSDEA”.

O que é a Quantum Global? É uma empresa de Jean-Claude Bastos de Morais, o accionista da Porto do Caio a quem o Fundo socorreu. O Fundo paga a Jean Claude (Porto do Caio) para fazer estudos que justifiquem a entrada do Fundo no Porto do Caio? Paga a quem tem um interesse directo do negócio? Passamos a explicar, para não surgirem as habituais nuvens de fumo. Afirma o Fundo de Zenú que pagou à empresa de Jean-Claude para esta fazer um estudo que justificasse a entrada do Fundo numa empresa de Jean-Claude. Ou, empregando terminologia jurídica, A paga a B para B justificar a entrada de A em B!

Jean-Claude aparece sempre ligado ao filho do presidente JES, recebe pagamentos por parte dele e é o “dono” do Porto de Caio. Estamos perante um círculo vicioso: Jean-Claude justifica-se com Zenú, Zenú justifica-se com Jean-Claude. A verdade é que, se houvesse mesmo interesse em ter consultores internacionais a sério, as regras básicas obrigam a um concurso público ou algo de semelhante. No mínimo, um processo transparente.

Aliás, era bom conhecerem-se esses estudos, porque 120 milhões de dólares em estudos é muito estudo!

7 – É agora a vez dos pagamentos à Benguela Development S.A. Fala-se aqui de uma “Academia de Gestão Hoteleira de Angola, bem como a gestão das suas operações entre Outubro de 2015 e Janeiro de 2019”. Para esta “Academia”, prevê-se um investimento de cerca de 50 milhões de dólares. Mais uma vez, era bom que fosse explicado o que tem isto a ver com um Fundo Soberano, e que fossem apresentadas as contas dessa “Academia”. Faz o quê? Gasta em quê? Formou quantos estudantes? Tem quantos professores? Já agora, convém referir que Jean-Claude Bastos de Morais é accionista desta empresa e Zenú também.

8 – Agora é a vez das doações à Fundação Africana para a Inovação, que tem como figura central… Jean-Claude Bastos de Morais. Outra vez? Pois, parece que sim. Não há outro “filantropo” em Angola a quem Zenú queira fazer doações. Que projectos concretos foram apoiados por esta Fundação? Que angolanos foram beneficiados? De que forma?

A “nota” que o Fundo Soberano publicou no seu website confirma um facto fundamental: o dinheiro do Fundo sai em grandes quantidades para organizações ligadas a Jean-Claude Bastos de Morais. Na contabilidade apresentada pelo próprio Fundo, temos pelo menos meio bilião de dólares, se somarmos todas as confirmações obtidas.

O Fundo investe no Porto do Caio, onde está Jean-Claude Bastos de Morais.

O Fundo compra serviços à Quantum Global, onde está Jean-Claude Bastos de Morais.

O Fundo paga à Benguela Development S.A., onde administra Jean-Claude Bastos de Morais e José Filomeno dos Santos é sócio.

O Fundo doa à Fundação Africana para a Inovação, onde pontifica Jean-Claude Bastos de Morais.

Nos termos das normas do Código do Processo Penal angolano, a “nota” do Fundo Soberano de Angola deve constituir corpo de delito da eventual prática de vários crimes públicos, e levar o Ministério Público a abrir a respectiva instrução criminal. Esta é a única conclusão que se impõe.

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