Uma Confissão de Burrice: o caso Lídia Amões

No Tribunal Provincial de Luanda decorre um processo judicial que, de cada vez que é pensado, desencadeia um sentimento de burrice extrema, impelindo à leitura e releitura da legislação. Trata-se do caso Lídia Amões.

Não está aqui em causa o facto de o juiz José Sequeira ter decretado e insistido  recentemente na detenção de um morto, Azeres Amões, mesmo depois de ter sido comunicado do facto. Serviu apenas para o prestigiado jornal Le Monde, de França, reportar ao mundo que o sistema judicial angolano é uma aberração. O que está em causa é um incompreensível Despacho de Pronúncia e a lentidão inacreditável para se decidir acerca de um requerimento de habeas corpus.

O Despacho de Pronúncia é tão bizarro, que exige nova ponderação sobre conceitos básicos. A sua tese central é simples: Lídia Amões, enquanto cabeça-de-casal da herança do pai, Valentim Amões, apoderou-se e desbaratou os bens dessa herança. Contudo, e apenas abordando as questões numa perspectiva jurídica e não factual, esta tese padece de várias anormalidades.

O objecto de uma sucessão são as relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa que faleceu (artigo 2024.º do Código Civil). Não são as relações jurídicas das empresas em que essa pessoa detinha participações ou exercia funções. Isto quer dizer que o que constitui a herança de Valentim Amões não são os bens em si, sejam edifícios, aviões ou veículos das empresas, mas sim as acções e quotas nessas sociedades. Este é primeiro ponto básico torna-se confuso no caso deste Despacho. Estamos a falar de quê? Bens da herança ou das empresas?

Por exemplo, quando se diz que Lídia Amões vendeu ao BESA um imóvel denominado Ruacaná, e que se creditou o produto dessa venda numa empresa chamada MNR-Marinela Comercial, não se diz o essencial: a quem pertencia o imóvel, se a Valentim Amões, se a uma empresa, e a quem pertence essa MNR. Sem isto estar definido, não sabemos se estamos a falar de bens da herança ou da empresa. Eventualmente, consultando as folhas 165 e 166 dos autos teremos resposta, mas compete ao responsável pela Pronúncia descrever os factos concretos e as imputações criminais, e não deixar tudo pela rama.

O mesmo se poderá dizer sobre o imóvel “Casa do Planalto”, e sobre muitas outras situações elencadas ao longo deste Despacho. O facto é que Lídia Amões só pode ser acusada de desviar aquilo que pertence à herança e não ao universo de empresas que o seu pai deteria. Este é um primeiro ponto. 

Cabeça-de-casal

O segundo ponto da complexa questão tem que ver com os poderes do cabeça-de-casal. A lei é clara em atribuir poderes de administração ao cabeça-de-casal (artigo 2079.º do Código Civil), entendendo-se que este é capaz de garantir a conservação em bom estado da herança. Mais ainda, nos termos do artigo 2090.º do Código Civil, o cabeça-de-casal deve vender os frutos ou outros bens deterioráveis, podendo aplicar essa verba nas despesas de funeral e sufrágios, além do cumprimento dos encargos de administração.

Portanto, à partida, todos os bens deterioráveis e seus frutos são vendáveis. O cabeça-de-casal não está proibido de vender. Seria necessário averiguar a natureza de cada um dos bens em concreto. Os aviões poderiam não estar a voar, e serem deterioráveis. 

Por outro lado, qualquer dos herdeiros tinha o direito de exigir que o cabeça-de-casal distribuísse por todos até metade dos rendimentos que lhes caibam. Nesse sentido, poderão ser interpretados outros factos. 

O grande problema é que o Despacho não avalia nem detalha – antes lança factos sem ligação, que podem não ser crime, porque nem assim vêem qualificados. 

E há ainda a história surreal de Lídia Amões ter recrutado 150 pessoas a quem distribuiu 15 000 dólares cada, levou-as a Israel, tendo pago os custos de viagem, e aí recuperou o dinheiro, num esquema de branqueamento de capitais. Mas qual o sentido disto? Quem ia distribuir 15 000 dólares por 150 pessoas?… Trapalhice.

Prisão preventiva

Todavia, a situação mais grave e intrigante é aquela que leva à decisão de prender preventivamente Lídia Amões a 14 de Março de 2016 por, entre outros, o ilícito não admitir a liberdade provisória, segundo o juiz.

Leu-se de novo a legislação em vigor, que é a Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (Lei n.º 25715, de 18 de Setembro). Esta lei entrou em vigor a 18 de Dezembro de 2015. Estava, portanto, em vigor no momento em que o juiz exarou o Despacho no qual se decidia pela prisão preventiva de Lídia Amões.

Em lugar nenhum da Lei se fala em crimes que não admitem liberdade provisória (embora a Constituição da República de Angola mantenha esta designação no seu artigo 61.º). Apenas o artigo 36.º, n.º 3 declara a prisão preventiva obrigatória em crimes de genocídio e contra a humanidade, organização terrorista e terrorismo, e crimes que a lei declare imprescritíveis ou que tornem a prisão preventiva obrigatória. Ora, o juiz não refere quais os crimes que têm estas características e que determinaram a sua decisão. Deveria tê-lo feito. Num Estado de Direito, o princípio não é o da liberdade provisória, mas sim o da prisão provisória. A regra é a liberdade, não o cárcere.

Atente-se em cada um dos crimes imputados a Lídia Amões:

– Falsificação, artigo 219.º do Código Penal (CP)                                                                                                               – Abuso de confiança, artigo 453.º e 421.º, n.º 5 do CP                                                                                                     – Burla por defraudação, artigo 451.º, n.º 3 do C P                                                                                                           – Burla, artigo 450, n.º1 do CP

A Constituição não declara estes crimes imprescritíveis. No seu artigo 61.º, apenas se refere ao genocídio e aos crimes contra a humanidade previstos na lei.

Percorrendo o Código Penal, não se encontram referências à imprescritibilidade dos crimes imputados a Lídia (o autor deste texto não tem a pretensão de conhecer todos os textos legais, mas justamente por isso era exigível que o juiz explicitasse a que crimes se referia), o que inviabiliza qualquer direito de defesa, assumindo um comportamento claro de violação da Constituição.

Acresce que a norma anterior, que referia os crimes que não admitem liberdade provisória, ou seja, o artigo 10.º, n.º 2 da Lei 18-A/92 de 17 de Julho, foi revogada pelo artigo 52.º da nova Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro). Este artigo revoga expressamente essa lei.

Assim, não é clara a lei que impõe a prisão automática de Lídia Amões.

Além do mais, temos de contar com uma decisão pretérita do Tribunal Constitucional de Angola no caso que envolve Lídia Amões e o seu falecido irmão Azeres Amões. Este alto Tribunal decidiu que as medidas de coacção aplicadas a Lídia Amões tinham excedido largamente o prazo de duração, e por isso estavam extintas (ver acórdão n.º 348/2016, p.5). Não se compreende como é que um juiz aplica uma medida de coacção privativa de liberdade a uma pessoa a quem o Tribunal Constitucional já considerou estar a ser vítima de uma medida de coacção ilegal por ter passado o prazo há muito tempo. Se a 17 de Fevereiro de 2016 já tinha passado o prazo há muito tempo, há mais tempo terá passado a 23 de Março de 2016, quando Lídia Amões foi notificada da decisão de prisão. E não é o facto de haver acusação e pronúncia neste caso que altera a longa passagem do tempo.

Muito haveria para dizer sobre o tempo que está a demorar a decisão de habeas corpus. O pedido entrou no Tribunal a 5 de Abril, teve pronúncia favorável do Ministério Público a 3 de Junho; mas a verdade é que a 8 de Julho ainda não está decidido. Não há justificação. É uma flagrante violação dos princípios constitucionais.

Em resumo:

Há que determinar se os bens referidos na pronúncia pertenciam ou não à herança de Valentim Amões, já que isso não é claro.

Há que apurar se os bens não poderiam ser vendidos de acordo com a lei civil, pois isto também não é abordado.

Desconhece-se o fundamento legal para a prisão preventiva.

É insustentável esperar três meses por uma decisão de habeas corpus.

Uma nota final: é incompreensível que juízes de carreira e com formação como José Sequeira e Januário Domingos tomem decisões como aquelas que temos vindo a reportar. Parece que a doutrina que seguem não é de Direito, mas de alguma escola extra-judicial da segurança do Estado extraídade um KGB qualquer desse ex-mundo soviético que se tornou numa máfia.

Comentários