Ensaio Legal sobre JES no Tribunal Penal Internacional

A saída de José Eduardo dos Santos (JES) enquanto presidente da República garante-lhe automaticamente imunidade jurídica ao abrigo do Estatuto dos antigos presidentes da República (artigo 133.º da CRA).

A questão que se coloca em termos de justiça transicional é até que ponto existe legitimidade neste estatuto e se, pelo contrário, não deveria JES ser submetido a julgamento. Poderão os ditadores continuar a saquear um país impunemente?

Há já algum tempo que o Direito Internacional, apesar da hipocrisia que o envolve e das falhas que lhe são reconhecíveis, tem procurado criar instrumentos legais que definitivamente afastem a possibilidade de qualquer dirigente político cometer crimes no exercício das suas funções e escapar impune. Até ao momento, o elenco legal mais conseguido e aperfeiçoado é aquele que resulta do Estatuto de Roma, aplicado pelo Tribunal Penal Internacional de Haia.

O Tribunal Penal Internacional foi estabelecido para julgar certos crimes típicos e detalhados na sua norma fundadora. Esses crimes são os seguintes: genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão. São crimes ligados à violência e à guerra, essencialmente de natureza pessoal. Aquilo a que na dogmática penal se chama “Crimes contra as pessoas”. Não surge de forma clara e evidente a tipificação criminal dos actos que JES mais terá cometido nos últimos anos: os crimes contra o património.

O saque da riqueza natural de Angola, a lavagem de dinheiro no sistema financeiro internacional, a corrupção nacional e internacional e outras situações semelhantes são os factos globais que caracterizam a actividade de JES, constituindo a mais óbvia imagem global dos factos que se lhe pode aplicar.

Poderá parecer, à partida, que tais comportamentos não se enquadram nas previsões do Estatuto de Roma, não podendo por isso ser levadas a julgamento no Tribunal Penal Internacional.

Contudo, uma análise mais detalhada das suas normas permite aventar uma hipótese. Essa hipótese é colocada pelo artigo 7.º, n.º 1, alínea K do Estatuto de Roma.

Este artigo considera como crime “Outros actos desumanos de carácter semelhante, causando intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde mental ou física”.

O artigo 7.º, n.º 1, alínea K é aquilo a que se chama uma disposição residual, o que indica que a lista de actos expressamente indicada nos anteriores artigos não é exaustiva. Esta norma reflecte o sentimento de que não é possível criar uma lista exaustiva de crimes. Como escreve McCormack: "A capacidade dos seres humanos de inventar novas formas de atrocidades é uma constante fonte de desconforto e vergonha e é fundamental que existam disposições para facilitar a repressão de tais acções, que num momento não sejam conhecidas ou experimentadas.”

De facto, condenar um país à pobreza, à esperança de vida reduzida e à permanente mortalidade infantil elevada, por se terem desviado ou deixado desviar os recursos desse país, é uma das maiores atrocidades que se pode cometer. Uma atrocidade que tem de ser punida realmente.

Portanto, temos aqui uma norma que permite enquadrar situações que não estejam especificadas nas outras normas. Há dois elementos materiais para este crime: 1) acto que cause grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde mental ou física; e 2) acto de carácter semelhante (natureza e gravidade) a qualquer outro acto no artigo 7 (1).

A este respeito, em primeiro lugar há que esclarecer que nenhum dos actos que constituem crimes contra a humanidade de acordo com o artigo 7 (1) (a) a (j) poderiam, simultaneamente, ser considerados como outros actos desumanos. Logo, trata-se de um novo tipo de acto atroz, em que poderemos incluir a absorção e privação dos recursos de um país. Sendo que, com referência ao princípio nullum crimen sine lege, os actos desumanos devem ser considerados graves violações do direito consuetudinário internacional e os direitos básicos relativos aos seres humanos, extraídos das normas do direito internacional dos direitos humanos. E será no caso concreto que se fará essa apreciação.

Assim, dispomos de bases jurídicas para iniciar um processo-crime internacional contra JES.

Esta breve nota serve então para afirmar que é possível acusar JES por crimes contra a humanidade, na égide do Tribunal Penal Internacional. É verdade que Angola não faz parte do Tratado Internacional que estabeleceu o Tribunal, mas isso só a impede de entregar JES a Haia, não impede que o Tribunal dê início aos procedimentos.

Tal como aconteceu com Pinochet no passado, também agora a justiça internacional tem de ser posta em funcionamento.

 

 

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