O Diabo Tem Sempre Advogados e o Povo Adora Falsos Ídolos

Há dias tive uma interessante discussão com um apoiante do regime, que é meu amigo, sobre a possibilidade de a crise actual gerar mudanças em Angola. Para ele, haverá apenas mais sofrimento e repressão para o povo, e o regime sairá fortalecido. Não haverá mudanças. Idealista, tentei argumentar sobre sinais catalisadores e propiciadores de mudança e esbarrei num obstáculo maior: a mentalidade da população.
No início, o meu amigo propôs-me, com fina ironia, a metodologia de debate para a nossa conversa: ele faria o papel de advogado do diabo e eu o de sonhador.
Respondi-lhe, a sorrir, que o diabo tem sempre advogados. O lado do bem e das vítimas é que tem sempre dificuldades em arranjar um. Citei o exemplo das grandes causas dos direitos humanos em Angola, cuja defesa depende exclusivamente de um número de advogados que se conta pelos dedos da mão, porque os outros fogem como o diabo da cruz.
Estabelecida a metodologia, passámos para a análise do aumento, a 1 de Janeiro, do preço dos combustíveis em Angola (39% o da gasolina e 80% o do gasóleo), quando, no mercado internacional, o preço do petróleo continua a baixar. No mesmo dia, o governo aumentou também os preços da água e da electricidade.
Abordámos de seguida a crescente crise de circulação de moeda estrangeira nos sistemas bancário e paralelo, num país onde praticamente se importa tudo, e o seu impacto negativo na economia nacional.
Falámos ainda da economia centralizada, controlada pela dupla personalidade dos dirigentes-empresários, e da consequente privatização das decisões de Estado para favorecimento de interesses particulares dos seus dirigentes.
Concordámos sobre a radiografia da situação actual do país.
Passei em revista crises passadas, uma das quais levou o presidente a declarar no auge do conflito pós-eleitoral, em 1994, que “vivemos da caridade internacional”. Matávamo-nos uns aos outros, enquanto a comunidade internacional, através da ajuda humanitária, cuidava dos deslocados e dos famintos.
Então partilhei o seguinte comentário com o meu amigo: “A presente situação, por ser extremamente difícil e susceptível de gerar estados de descontentamento e de tensão social, exige da parte do governo maior rigor, autoridade e disciplina.” Ele acusou-me logo de ser agitador. Disse-lhe então a verdade: trata-se de uma passagem do discurso presidencial de 6 de Outubro de 1995, proferido na Comissão Permanente do Conselho de Ministros, durante uma das crises que ele superou com a sua mestria habitual, lavando as mãos de tudo o que corre mal no seu governo.
Prossegui, referindo que há “um descontentamento generalizado e que esse desencanto gerou uma grande tensão social na capital do país. O governo revelou-se assim ineficaz, foi perdendo autoridade e capacidade de resolver os problemas mais prementes da Nação. […] Houve mesmo um abandono prático das funções sociais do Estado, que criou a opinião de que o governo é insensível aos gritantes problemas sociais [da população]”.
Ademais, “o governo vive de acções pontuais que visam apagar potenciais focos de tensão ou sublevação. Não há uma acção sistemática e programada com um fim em vista. Nota-se, sobretudo, ausência de comando e direcção. Não se exige e não se impõe. Escamoteiam-se os dados e as informações”.
Neste ponto da conversa, o advogado do diabo acusou-me de ignorar as realizações do governo, como a construção da Cidade do Kilamba, os Zangos I, II, II e IV, o aumento da população estudantil, o aumento da classe média, o crescimento urbano de Luanda. Falou também do facto de Angola ter passado agora a país de nível médio no índice de desenvolvimento das Nações Unidas e cuidou também de me explicar que os dados das Nações Unidas segundo os quais o país tem a maior taxa de mortalidade infantil do mundo são falsos.
Acusou-me, em seguida, de ter tendências subversivas contra a autoridade do Estado, argumentando que o país nunca esteve sem comando, graças à clarividência do nosso líder.
Então, o advogado do diabo, como se autodesignou o meu amigo, lembrou outras crises mais graves, de que o poder saiu reforçado. Enfatizou que esta crise não mudaria o status quo porque, disse, brincando, “o povo está enfeitiçado, paralisado e não há oposição ou lideranças alternativas que o resgatem”. De seguida usou uma metáfora religiosa para explicar que este nosso povo “é um rebanho sem pastor, à mercê dos predadores”. Explicou que o povo apenas teme e respeita os maus, fruto da sua mentalidade colonizada, submissa e violentada pela guerra.
Expliquei que todas as afirmações que eu acabara de citar pertenciam ao discurso proferido pelo presidente do MPLA, que cumulativamente é presidente da República, numa reunião do seu Bureau Político, em Maio de 1996. Fora ele próprio quem afirmara que o Estado estava “sem comando”.
“O presidente nunca teria dito isso, simplesmente porque ele era o líder. Sempre estás a denegri-lo, e sem provas”, respondeu-me. Prometi-lhe as provas, que tinha em mãos enquanto conversávamos, para mais tarde.
Fiz-lhe ver que o país está “perante uma situação muito grave. O descalabro social é evidente, a pobreza das populações é extrema, o desespero começa a invadir muitos corações. É o momento da verdade. Os que falharam devem assumir modestamente os seus erros. É preciso mudar, e para mudar temos de saber exactamente quais as causas (…)”.
E esclareci que tinha acabado de citar um trecho da Mensagem presidencial à Nação de 30 de Maio de 1995. Nessa altura, o presidente atribuiu, “em grande medida”, o “descalabro social”, “à aplicação de programas económicos que redundam inevitavelmente numa grave inflação permanente, que implicam uma redução contínua dos salários reais e de que resulta o quase completo abandono das funções sociais do Estado e a destruição da administração pública”. Passados 20 anos, posso usar as suas palavras como minhas para descrever a situação actual. Há apenas uma diferença. Usando as mesmas palavras do presidente, 20 anos depois posso ser acusado de promover uma rebelião no país através da agitação popular.
Mencionei então que todas as declarações que adoptei como minhas foram extraídas do segundo volume do livro “José Eduardo dos Santos e os Desafios do Seu Tempo: Palavras de um Estadista, 1979-2004”.
Concluímos, por unanimidade, que o problema é o povo, porque adora falsos ídolos como o JES e o seu genro Bento Kangamba; a promessa de corrupção e o poder da arbitrariedade. Discordámos sobre a forma de criar lideranças alternativas que mostrem ao povo o caminho do bem, da lei justa, da estabilidade e da humanização dos actos de governo ao serviço do povo.
O meu amigo pediu-me então que eu guardasse o meu sonho de mudança para mim mesmo, sob pena de cair no descrédito ou no ridículo. Aqui, discordámos. Um país também precisa de sonhadores. Fiz-lhe ver, por outro lado, que eu sou um filho do povo, para o bem e para o mal.
Encerrámos o debate.