O General-Procurador da República e o Rei de Inglaterra

Há uma história que, segundo se conta, marca o início do Estado de Direito em Inglaterra (rule of law). Terá acontecido em finais do século XVII.

O rei de Inglaterra estava zangado com determinada situação que lhe dizia respeito, decidiu chamar os seus juízes e disse-lhes que àquilo não seria aplicada a lei, porque era um assunto dele e, uma vez que era ele quem fazia a lei, também podia decidir que esta não se lhe aplicava. O chief justice discordou e afirmou que, a partir do momento em que existia lei, esta era para ser cumprida por todos, incluindo pelo rei. E assim determinou que ao caso do rei também se aplicasse a lei. Este juiz acabou por ser afastado, mas a sua interpretação vingou e estabeleceu-se o princípio da obediência integral à lei por parte de todos os órgãos do Estado.

Vem este caso a propósito dos últimos desenvolvimentos e actividades do general-procurador João Maria de Sousa e do Ministério Público que este dirige. O principal dever do M.P. é aplicar a lei de forma igual para todos, a começar nas próprias actividades do M.P.

Hoje vamos falar novamente do caso Lídia Amões. Não se trata aqui de defender a sua inocência ou culpa, uma vez que não se sabe do que é acusada. Trata-se de invocar a aplicação da lei ao caso da pessoa em questão: a lei processual que determina prazos irrevogáveis para a instrução preparatória e a lei nova que exige, no mínimo, a análise periódica e regular de todas as medidas cautelares aplicadas. Não se pode é ficar num limbo em que se mantêm indefinidamente medidas cautelares e não se encerra a instrução preparatória que corre há mais de dois anos, quando o prazo legal é de três meses, nos termos do artigo 337.º do Código Penal, que expressamente refere que os “prazos indicados (…) são improrrogáveis”. Há aqui uma desatenção clara do general-procurador João Maria de Sousa à lei, desatenção semelhante à do rei de Inglaterra, revelando arbítrio e não aplicação da lei. A mesma postura regalista traduz a falta de resposta às solicitações remetidas pelo provedor de Justiça sobre o tema: várias missivas por este enviadas, expressando preocupação pela passagem dos prazos, ficaram sem resposta.

A situação de Lídia Amões encontra-se agora no Tribunal Constitucional. O pedido de habeas corpus realizado no Tribunal Supremo foi indeferido. Na realidade, no ordenamento jurídico angolano, que neste particular segue o ordenamento jurídico português, não se deve esperar muito do habeas corpus: não tem tradição jurídica no direito luso, e foi um mero expediente de Salazar introduzido no final da Segunda Guerra Mundial, para mostrar que o Portugal da ditadura era semelhante à Inglaterra democrática. Posteriormente, não teve desenvolvimento jurisprudencial, sendo que os seus requisitos são muito restritos, tal como em Angola. O que se espera é que o Tribunal proceda a uma vigorosa defesa dos princípios constitucionais relativos ao Direito Penal – designadamente o da presunção de inocência, o do tratamento mais favorável e, sobretudo, o da proporcionalidade, agora explicitamente consagrada na lei das medidas cautelares – de modo que este tema seja tratado, precisamente, com equilíbrio, moderação e legalidade.

O que está em causa é, exactamente, a ausência de proporcionalidade das medidas cautelares aplicadas a Lídia Amões. O sentido das proporções tem de ser reestabelecido com celeridade.

Espera-se que o Tribunal Constitucional, que começa a ser o vale do desespero para onde se encaminham as caudas mordidas pelas armadilhas que o regime colocou a si próprio, desempenhe a sua função de válvula de escape e de guardião último da Constituição e da legalidade.
 

 

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