A Morte da Nair
Qual é o valor da vida em Angola? Pergunto-me sempre. A morte da Nair causou-me revolta, a revolta do impotente – daquele que se indigna mas nada faz.
Há dias, acompanhei a tragédia de uma mãe. Perante as queixas de Nair Barros, de oito anos – dores de cabeça e na coluna – a mãe levou-a ao Centro de Saúde da Samba. Aqui se fez a gota espessa, com resultado positivo para malária. O pessoal clínico decidiu administrar à criança uma dose combinada de Coartem e Paracetamol, incluindo também na receita dois pacotes de soro “para beber livremente” e ácido fólico. Mandaram-na para casa.
A família achou o tratamento insuficiente e recorreu ao Hospital Pediátrico David Bernardino no mesmo dia. Nessa unidade, a médica requereu ao laboratório um exame de falciformação. Assinou, como médica, Maria Batalha. A menina foi de novo mandada para casa.
Na manhã seguinte, às 5h20, a mãe levou novamente a Nair ao Centro de Saúde da Samba, próximo da sua residência, porque esta se queixava de mais dores. O corpo clínico de serviço ralhou com a mãe porque já tinham visto a criança no dia anterior e já tinha passado a receita. Todavia, a Coordenação de Assistência Pediátrica de Luanda (COPAL) emitiu uma guia de transferência para o Hospital Pediátrico David Bernardino, por falta de médico na Samba e “para melhor observação médica”. Informou que a criança padecia de malária. A família dirigiu-se prontamente a esse hospital, com a menina ainda a caminhar pelos próprios pés.
De acordo com a mãe, a médica de serviço do Hospital Pediátrico informou-a de que já estava cansada, por isso não atenderia a Nair, e aconselhou a família a administrar-lhe soro. Indicou-lhe um corredor onde há panelas com soro e uma caneca para que os familiares dos pacientes possam retirar o líquido e dar de beber aos seus filhos. A médica, não identificada pelo nome, disse à família para regressarem a casa e continuarem com a medicação de Coartem e Paracetamol, conforme receitado pelo Centro de Saúde da Samba. “A médica disse-me vai para casa, a filha vai ficar boa”, referiu a mãe.
O vaivém
Preocupada, a mãe dirigiu-se ao Hospital do Prenda, onde talvez pudesse encontrar assistência. O corpo clínico referiu que não tinha serviço de pediatria e aconselhou a família, exposta a situação, a seguir para o Hospital dos Cajueiros. Pela distância e desconhecimento da localização exacta do referido hospital, a família regressou ao Hospital Pediátrico David Bernardino.
Pacientemente, a família aguardou. “Veio um médico que queria observar a minha menina, mas a seguir veio logo outra médica para conversar com ele sobre os seus salários e problemas pessoais”, contou-me a mãe.
Entretanto, a criança fez no local um teste de malária que deu negativo. O médico, cuja assinatura é ilegível no documento, assinou a folha de exame e continuou com a sua conversa. O mesmo teste revelou também que o nível de hemoglobina da criança era baixo (7.4). Emitiu-se uma receita para administração de uma injecção de Diclofenac (anti-inflamatório, anti-pirético e analgésico), Coartem (para a malária) e soro oral.
“O médico não nos atendeu até às 15h00, quando a criança praticamente estava morta, nos braços do Noé [tio da Nair]. Só então decidiram pô-la, já nesse estado, a partilhar uma cama com uma bébé e puseram-na no soro quando já estava a dar os últimos suspiros”, relatou-me a mãe.
“Como somos povo, da camada baixa, ignoraram-nos”, lamentou a mãe.
Uma médica, que prefere não ser citada, refere que “com a hemoglobina a 7 miligramas por milímetro é mandatório internar-se a paciente, por apresentar sinais de anemia grave.”
“A criança deve estar sob observação em ambiente hospitalar e não no vaivém”, refere a médica.
“Também eu, como mãe, não sabia que há ali no hospital um sistema de embrulhar dinheiro e pôr num cesto de lixo para os médicos atenderem logo. Disseram-me apenas depois de a criança ter morrido”, revelou a mãe.
Paralelamente, o Registo de Atendimento de Urgência da Nair, no Hospital Pediátrico David Bernardino, não deixa margem para dúvidas. Registou-se apenas a data, o Número de Ordem – 292, o nome da paciente, o seu peso, de 20 quilos, a idade e o município onde reside. Não se registou a temperatura. Não foram assinalados quaisquer sinais de urgência na secção de triagem. Na última secção referente ao encaminhamento, também não se preencheu nada sobre a urgência geral de Pediatria. Nem sequer se assinou o referido boletim.
O trabalho dos médicos acabou por ser simples: a autópsia e a emissão do certificado de óbito, tendo sido anotada meningite como causa da morte.
Não se tratou de falta de meios, mas de boa vontade, de humanidade.
“Um simples procedimento, como usar o olhar e a fala, poderia ter preservado uma vida e feito a alegria de uma família”, desabafou a médica que preferiu o anonimato.
A Versão do Hospital
(Foto de Hélder Simões).
O Hospital Pediátrico tem uma versão diferente do que se passou. A prestimosa directora clínica, Elsa Barbosa, disse ter realizado uma investigação interna sobre o sucedido, que me comunicou passados quatro dias.
No fatídico dia, “às 6h00, a médica pediu para fazer um analgésico à criança. Foi na altura em que a mãe saiu do hospital. Não sabemos o que se passou depois”, disse a médica.
Depois do vaivém, no regresso da família ao hospital, de acordo com Elsa Barbosa, “a Nair foi logo internada. A olho nú via-se que era meningite. Ela [Nair] internou. Pergunta à mãe”.
“A sua morte foi uma surpresa”, lamentou Elsa Barbosa.
À pergunta sobre o facto de Nair ter sido colocada a partilhar a mesma cama, sabendo o corpo clínico da sua doença, a directora clínica referiu que “a meningite não passa de maneira rápida”.
Elsa Barbosa referiu ainda que foi feita uma gota espessa [teste de malária] na urgência. Sobre o exame de falciformação pedido pela médica, indicou que era para ser feito em ambulatório, após a criança receber alta. “Não é um exame de urgência e nada tem a ver com a doença de internamento”.
“A meningite é muito grave. É uma fatalidade", sublinhou a médica.
Também lhe coloquei a pergunta sobre a alegação da médica de turno ter dito à família que não atenderia a Nair porque já estava cansada. “A médica informou-me que não disse nada, mas que a mãe até agradeceu pelo atendimento”.
A directora clínica explicou também sobre a tentativa de pagamento pela família. “Temos uma área de rentablização. A mãe inicialmente foi para essa área, disse que pagaria pelo internamento e tinha um patrão que a ajudaria pagar”.
“A enfermeira levou-a para o banco de urgência. Viu que a criança não estava bem e que precisava de ficar num sítio com médicos. A mãe não tinha dinheiro na altura, disse que pediria ao patrão” afirmou.
Segundo Elsa Barbosa, “a enfermeira explicou que não era pelo dinheiro e levou a criança ao banco de urgência para ser assistida”.
Durante a minha conversa com a directora clínica, entreguei-lhe o número de telefone da mãe, para que ela pudesse ser ouvida.
“Porquê o hospital não me chama? Não têm coragem? Estou preparada para declarar em tribunal como eu perdi uma vida porque os médicos não atenderam a minha filha e humilharam-me”, disse a mãe.
“A minha cunhada Mimi, que esteve sempre comigo, ficou traumatizada com o que se passou e com a humilhação que passámos e até agora está muda”, revelou a mãe. Fui visitar a Mimi Barros, de 23 anos, que comunicou comigo por escrito.
Durante o vaivém entre os hospitais, a mãe fez-se sempre acompanhar do esposo, do cunhado Noé Barros e da esposa deste, a Mimi.
O vaivém, a humilhação e a morte da Nair traumatizaram Mimi Barros, de 23 anos, que ficou muda.
Responsabilidade de quem?
Como se pode responsabilizar o pessoal médico? No óbito, uma senhora próxima da família dizia à mãe que deveria ter sido agressiva. Faltou dizer corruptora. A mãe é pobre e por isso recorreu aos hospitais públicos. É uma cidadã muito respeitosa e temerosa da autoridade pública. Em momentos de desespero, manifestou a sua disponibilidade para pagar a “gasosa”, termo que designa a corrupção de sobrevivência exigida pelo funcionalismo público para prestar serviços aos cidadãos.
“A médica disse-me que o hospital tem câmaras e não podem ser vistos a receber dinheiro e que eu poderia queixar”, desabafou a mãe. Não sabia era do esquema do cesto de lixo.
Há uma grande negligência dos cidadãos em relação ao sector da saúde. Não há exigência colectiva para a melhoria dos serviços hospitalares. Cada um safa-se como pode. Os ricos e os que podem cuidam de si e das suas famílias no exterior do país.
No entanto, é preciso reconhecer que não é possível haver exigência colectiva para a melhoria dos serviços de saúde sem fazer o mesmo para a educação. Para isso, é preciso tocar na questão fulcral da governação, porque cabe a quem governa decidir sobre as políticas de saúde, a sua gestão e a sua qualidade.
“Nós, os médicos, somos cobardes para denunciar os nossos patrões, mas temos a coragem de circular entre a morte e a vida e decidir quem vai [morre] e quem fica [vive]. É assim que temos vindo a atraiçoar o juramento de Hipócrates”, afirmou a médica.
O exemplo totalitário de Cuba
Em Cuba, por exemplo, que tem um regime totalitário e inspirador para Angola, o governo sempre investiu no sector da saúde para torná-lo no grande triunfo da revolução e no maior orgulho do seu povo.
Para se alcançar tal desiderato, Cuba teve de investir primeiro na educação e depois colocá-la ao serviço de toda a sociedade. A qualidade desses serviços tem servido como matéria de exportação. Cuba tem enviado médicos e professores para várias partes do mundo e tem recebido estudantes de muitos países.
Em Angola, os cubanos prestaram um serviço inestimável e inigualável aos sectores da saúde e da educação para o bem do povo angolano. Recentemente, um contingente de médicos cubanos abandonou o país porque o governo angolano não lhes paga os salários.
Nos anos 80, Fidel de Castro teve de acudir Angola, enviando medicamentos no valor de US $700 mil para melhorar a situação desastrosa em que se encontravam os hospitais. O governo do presidente José Eduardo dos Santos dizia que não tinha dinheiro e recusava-se a assinar uma carta de crédito para que Cuba enviasse os medicamentos, segundo revelações constantes num artigo do académico cubano Piero Gleijeses, “O Peão de Moscovo? Cuba em África 1974-1988”. “Nós não podemos deixar que alguém morra no hospital, uma criança, um velho, um ferido, um soldado ou quem quer que seja porque alguém se esqueceu de assinar uma carta de crédito ou porque alguém não a assinou…”, assim Fidel justificou a sua decisão perante o seu gabinete, citado no artigo.
Esta política do governo de José Eduardo dos Santos, que consiste em deixar a população ao abandono, continua em Angola.
Em Angola, o grande triunfo da revolução é a mentira.
O sistema de saúde é desumano, mas a propaganda humaniza-o. Ainda há pouco se ouvia na Rádio Nacional de Angola a publicidade sobre os feitos do regime, com alguém a tagarelar que temos “mais saúde, sim!”
Angola tem a pior taxa de mortalidade infantil do mundo, superando o Afeganistão e o Iraque, destruídos por uma guerra ainda em curso. A economia nacional cresceu apenas para satisfazer os caprichos luxuosos dos detentores de poder e a esperteza dos oportunistas. Agora, em crise, passa-se o mesmo, só há recursos para satisfazer os caprichos luxuosos dos detentores de poder e a esperteza dos oportunistas.
Em tempos, senti essa revolta impotente quando soube que uma primeira e sorridente senhora havia feito uma grande doação de medicamentos expirados a uma unidade hospitalar, para efeitos de publicidade. O seu séquito prometera ao empresário estrangeiro que os cedera a sua devolução após a concorrida cerimónia oficial de doação. Deixou lá os medicamentos, que acabaram na candonga e foram de facto utilizados. O meu silêncio, a pedido da fonte, tornou-me cúmplice de tamanha monstruosidade.
Desta vez, sobre a morte da Nair, já não aceito ser cúmplice com o meu silêncio. Prefiro desabafar a revolta e a impotência que sinto como cidadão. Tenho a capacidade e a responsabilidade de investigar o sector da saúde. Esse é o meu poder enquanto cidadão e devo usá-lo para um bem comum.
A morte da Nair envergonha-me e entristece-me.