Poder Judicial é o Veneno na Ponta da Lança da Repressão
João Domingos da Rocha, de 28 anos, encontra-se detido na Comarca Central de Luanda há sete anos, em prisão preventiva, por suspeita de furto de um balão de fardo (roupa usada que é doada por atacado). Soube deste caso, e de muitos outros semelhantes, através dos presos políticos Benedito Jeremias “Dito” e Itler Jessy Chiconde, durante a passagem de ambos pela referida comarca.
De um lado, Luaty Beirão, companheiro de causa e também detido no Processo dos 15, chamava a atenção do mundo para a causa da liberdade de expressão em Angola, despertando a solidariedade internacional face à sua persistente greve de fome. Do outro, “Dito”, torturado dias antes por guardas prisionais, e Itler procediam ao registo da crueldade do poder judicial sobre os mais desfavorecidos.
“Dito”, Itler e Luaty, juntamente com outros 12 detidos, aguardam julgamento em prisão preventiva, acusados de rebelião e atentado contra o presidente da República. Como prepararam o “golpe”? Reuniram-se a ler livros e a discutir ideias pacíficas e formas de resistência não-violenta à ditadura.
A onda de solidariedade internacional para com os 15 já é um facto histórico e sem precedentes no que diz respeito à mobilização da sociedade civil em prol da liberdade em Angola.
Também é um facto histórico o fim do culto de personalidade a José Eduardo dos Santos em Angola, por conta da indignação interna causada pela detenção abusiva e injustificada dos 15. Devido ao efeito boomerang da sua política repressiva, os danos na imagem e na legitimidade internacionais do presidente da República são irreparáveis. José Eduardo dos Santos passará a figurar nos livros de História como o ditador que, ao fim de 36 anos no poder e enquanto comandante-em-chefe de um dos maiores e mais bem equipados exércitos de África, acusou, no total, 17 “miúdos” de tentativa de golpe de Estado contra a sua pessoa por meio da queima de pneus. Isto mesmo: o despacho de pronúncia do tribunal afirma que os activistas iriam dirigir-se ao palácio presidencial, queimando pneus, com vista a “despejar o presidente da República se este resistisse à pressão dos manifestantes”.
Enquanto estes bravos jovens aguardam julgamento em prisão preventiva, o foco da atenção pública passa a ser o poder judicial.
Compete-me então, por vontade de ambos, dar a conhecer o trabalho de “Dito” e de Itler, que, enquanto estiveram detidos na Comarca Central de Luanda, criaram mecanismos para que eu pudesse falar directamente com os presos e aceder a informação e a documentos sobre o estado da justiça em Angola. Ambos demonstraram enorme abnegação, solidariedade e sentido de responsabilidade, menorizando o seu próprio calvário e dando prioridade ao registo dos factos e das histórias daqueles que não têm voz.
A 23 de Outubro, o Jornal de Angola publicou uma matéria de capa intitulada “Milhares de reclusos são livres graças ao indulto presidencial”. O texto referia-se ao indulto decretado por José Eduardo dos Santos para a libertação de presos que tivessem cumprido metade da sua pena e que tivessem sido condenados a uma pena de até 12 anos.
“Acredito que se esqueceram de mim. Sou órfão e não tenho família em Luanda, só no Kwanza-Norte, de onde venho”, lamentou João Domingos da Rocha, detido há sete anos em prisão preventiva, sob o processo 2675/08. Caso tivesse sido acusado, julgado e condenado, este cidadão teria cumprido, no máximo, uma pena de cinco anos, em caso de exagero. Este é um exemplo, entre muitos, da prática desumana do poder judicial em Angola.
Há também o caso de Justino Longia, 26 anos, há cinco anos detido preventivamente por suspeita de um crime maior: o furto de dois balões de fardo. Trata-se do processo 2904/10. Outro caso: Bernardo Umba Samuel, 30 anos, está há quatro anos em regime de prisão preventiva por furto assumido do equivalente a 300 euros. Foi apenas ouvido no acto de detenção. Trata-se do processo 5662/11.
Os detidos que reclamam pelos seus direitos, conforme vários depoimentos que recolhi na cadeia, arriscam-se a passar pela Sala de Reeducação. “Eles [agentes da punição] colocam um instrumento ligado à electricidade para descarregarem choques eléctricos nos corpos dos presos que reclamam. Depois dos choques eléctricos, batem nos reclamantes à vontade”, relatou-me uma das vítimas.
O presidente José Eduardo dos Santos tem a responsabilidade legal de dar “instruções directas” ao procurador-geral da República e, de um modo geral, ao Ministério Público. Fá-lo para intimidar, deter e punir aqueles que criticam a sua má-governação. Não o faz para garantir o zelo da legalidade.
A luta pela liberdade de expressão em Angola passa, assim, pela monitorização, investigação e denúncia das arbitrariedades do poder judicial. É este o veneno na ponta da lança que tem trespassado o exercício da cidadania.
*Texto original publicado na edição online do Expresso