A Crise e a Libertação da Consciência Social em Angola

Há dias, num jantar, uma advogada reclamava acerca da falta de informação oficial sobre a crise económica em Angola. Segundo ela, o governo, ou seja, o presidente, deveria informar a sociedade sobre as medidas de contenção e resolução da crise.

A conversa suscitou a necessidade de se reflectir sobre a realidade actual e sobre a capacidade dos angolanos para ganharem consciência social, tendo em conta o desnorte em que vivem. Pela primeira vez na história da Angola independente, todos os partidos políticos estão ideologicamente enfraquecidos e incapazes de forçar a sua visão de Angola à sociedade. Pela primeira vez em Angola, há uma oportunidade ímpar de se afirmar o exercício da cidadania acima da militância político-partidária.

O sector intermédio

A crise económica começa a afectar profundamente, pela primeira vez em muitos anos, um sector importante da população. É o sector intermédio, que tem vivido contente por não estar do lado do povo sofredor, e que se tem mantido sempre à disposição política e socioeconómica do regime, em troca de empregos, benefícios e estatuto social garantidos. Muitos escudam-se no medo para justificar a sua passividade ou cumplicidade em relação ao desgoverno do país.

Importa, antes de mais, definir este sector intermédio, e isso não pode ser feito sem antes definir o que é a elite – os que estão no topo.

A noção de elite angolana deve ser entendida de diferentes ângulos. Para o propósito que aqui nos interessa, basta referir o restrito grupo de pessoas que actualmente dominam a economia angolana, através do acesso exclusivo a capitais e a oportunidades de negócios, devido às suas funções no aparelho do Estado e/ou às suas ligações com o presidente José Eduardo dos Santos.  

O sector intermédio compreende os funcionários públicos e o pessoal qualificado empregue no sector privado. O investigador Ricardo Soares de Oliveira nota que esse sector, que equipara a uma classe média, engloba cerca de 500 mil pessoas num universo total de 24 milhões.

Não há classe média em Angola porque esse sector intermédio não estabelece padrões ideológicos e referências morais, profissionais e sociais que permitam equilíbrios na sociedade. À parte algumas personalidades, nem os médicos se pronunciam com verdade sobre o estado desumano do sector da saúde em Angola, nem os professores o fazem em relação à regressão do sector da educação. Por isso, só meia dúzia de advogados assumem a defesa dos direitos humanos em Angola. Os advogados não lutam contra o estado arbitrário e malevolente da justiça.

Também se identificam muitos casos de familiares e amigos de vítimas do regime que preferem não ser publicamente identificados como tal, para não colocarem em risco os seus empregos, a convivência lúdica com a elite, as sobras que esta distribui aos seguidores fiéis ou a possibilidade de ascensão a essa categoria. Um sistema gregário como o de Angola incentiva muitos a escolherem o lado do opressor, em vez de defenderem as suas famílias.

Em 2013, mais de 15,000 pessoas, maioritariamente camponesas, manifestaram-se pelo direito à vida, em Cafunfo, na Lunda-Norte e foram brutalmente reprimidas pelo exército e polícia. Essa iniciativa é impensável para o sector intermédio.

 

Por outro lado, como demonstram os estudos antropológicos, por norma é a classe média que tem acesso ao exercício da cidadania, enquanto os pobres são marginalizados. Só que em Angola o sector intermédio abomina o exercício da cidadania: refugiados na mediocridade promovida pela direcção do MPLA, os “intermédios” são incapazes de aspirar a um modelo diferente de sociedade.

Na realidade, o sector intermédio angolano estabeleceu-se após a celebração da independência no contexto de uma política maniqueísta: a formação de castas. Depois de dividir a sociedade em estratos de dirigentes, responsáveis (altos gestores públicos), técnicos superiores, técnicos médios, operários e camponeses, o MPLA atribuía a cada um deles um determinado tipo de cartões de abastecimento, divisas e usufruto de propriedades. Havia também as lojas militares e da polícia, para os oficiais superiores. As lojas francas serviam os cooperantes (estrangeiros) e havia ainda as lojas dos diplomatas e das petrolíferas. Através da economia centralizada, era o partido quem determinava aquilo que cada estrato podia comer, vestir, comprar. Os dirigentes tinham, por exemplo, direito a queijo, maçãs, ovos, papel higiénico, Coca-Cola em lata e fraldas descartáveis.

De um modo geral, os operários e camponeses só tinham acesso às lojas do povo, com racionamentos de dois quilos de açúcar, um quilo de sal, um litro de óleo, dois quilos de arroz e mais um ou outro bem por mês, e sem direito a bens industriais. Até o acesso a camisas e sapatos e a bebidas alcoólicas era condicionado por este sistema de castas e pelos esquemas de corrupção e subserviência dele resultantes.

A mentalidade desse período prevalece na sociedade angolana. Nessa altura, muitos cidadãos tentavam ingressar na universidade ou completar os estudos superiores simplesmente para obterem o estatuto de técnicos superiores, estatuto que garantia o acesso às lojas complementares, nas quais a cesta básica incluía umas garrafas de whisky corrente. Os salários não valiam nada.

O sector intermédio é simultaneamente o principal travão da mudança e o acelerador para a organização da sociedade civil. É geralmente a força de bloqueio. Porquê? Porque funciona como correia de transmissão do exercício do poder entre a minúscula elite e a absoluta maioria dos 24 milhões de angolanos.

Garantia soberana do chefe

Para tranquilizar os intermédios, bastaria que o presidente garantisse soberanamente que a crise é passageira e que não haverá alterações profundas na ordem política e socioeconómica. É a política do oportunismo, da submissão intelectual, do conformismo e do distanciamento do exercício pleno da cidadania.

Mas qual é a motivação maior desse sector, para além da percepção de privilégios que para muitos nem sequer se materializam? Porque razão se mantêm fiéis ao regime? Em grande medida, a resposta encontra-se na erradicação, pelo MPLA, dos princípios do mérito, da competência, do conhecimento e dos valores morais na afirmação do cidadão enquanto ser individual, profissional e social. Basta a militância partidária, a renúncia ao exercício da cidadania, o silêncio ou a submissão para que o cidadão receba uma procuração do poder para se afirmar como “gente”. É o triunfo dos porcos, diria Orwell.

“Em Angola, as pessoas procuram obter privilégios ao invés de exigirem direitos”, resumiu em tempos um conhecido membro da sociedade civil. Assim ocorre a grande desinteligência da sociedade angolana. Os cidadãos portam-se como mendigos diante da possibilidade de usufruto dos seus próprios direitos. Renunciam à sua dignidade enquanto homens e mulheres livres, com o mesmo espírito dos antepassados que trocaram os seus próprios concidadãos por bugigangas e assim os enviaram para a escravidão.

Entretanto, começam a surgir sinais ténues de ruptura entre alguns estractos do sector intermédio e o poder. Essa ruptura é mais visível nas redes sociais: o activismo do Facebook tem conseguido enfraquecer a propaganda oficial e contrariar o pensamento amorfo que esta procura impor na sociedade.

De forma tímida, artistas influentes, entre os quais Bonga e Paulo Flores, começam a manifestar-se aberta e frontalmente em defesa da libertação dos 15 presos políticos, que se tornaram numa bandeira da luta pela liberdade em Angola. Familiares de preeminentes políticos do regime também se estão a juntar a esse coro.

Outro factor de alento é a falta de divisas, sem as quais é impossível alimentar o circuito de corrupção e a cultura de vida fácil que se instaurou no país. A noção de trabalho sério, de promoção da competência e do mérito, de racionalidade na gestão dos recursos públicos terá de ser reintroduzida como norma na função pública. É a sobrevivência do próprio regime que está agora em jogo.

Informação e responsabilidade

Os angolanos precisam de muito mais do que ser informados sobre a crise. Em 10 anos, de  2003 a 2013, Angola obteve receitas estimadas em US $467 biliões com a venda de petróleo, segundo cálculos do economista Alves da Rocha. Onde foi parar todo esse dinheiro? A prestação de contas, a responsabilização política, civil e criminal dos dirigentes deve ser um imperativo da sociedade.

Por exemplo, em 2009 o presidente informou a nação sobre a instituição de uma política de tolerância zero contra a corrupção, o esbanjamento de recursos, a fraude e outros crimes similares.

O presidente reconheceu então, do alto do seu cinismo, que o partido liderado por si, o MPLA, “aplicou timidamente o princípio de fiscalização dos actos de gestão do Governo, através da Assembleia Nacional e do Tribunal de Contas”. Ora, o governo era e continua a ser dirigido por si. Como poderia auto-fiscalizar-se? E o Tribunal de Contas não deveria ter sido um órgão independente do MPLA?

Na mesma ocasião, o presidente disse ainda que a falta de fiscalização, praticamente de si para si, foi “aproveitada por pessoas irresponsáveis e por gente de má-fé para o esbanjamento de recursos e para a prática de acções de gestão ilícitas e mesmo danosas ou fraudulentas”.

De então para agora, todos esses males enunciados multiplicaram-se de forma descontrolada, e nunca foram mencionadas ou sancionadas essas pessoas irresponsáveis e de má-fé que abundam no governo do presidente. Mas é como se toda a sociedade tivesse memória curta. O presidente informou e assumiu que só ele tem o verdadeiro poder de se fiscalizar a si próprio. Prova disso é o acórdão do Tribunal Constitucional que retira o papel de fiscalização da Assembleia Nacional, a menos que seja autorizada pelo presidente.

Conclusões

O MPLA e o seu presidente já não são capazes de liderar a transição democrática. Essa tarefa deve ser assumida pela sociedade nas suas componentes cívica, social e política.

Apesar de dispersos e encapotados, há na sociedade cidadãos cuja capacidade crítica e visão para o país transcendem as fronteiras partidárias, a dependência económica e as pressões familiares e sociais. Muitos estão interessados numa transição verdadeiramente democrática e percebem o momento histórico de transformar Angola e de estarem do lado das forças do bem, ainda indefinidas.

É nessa dispersão de inteligências que se pode criar uma plataforma de pensamento capaz de promover uma causa comum, que inspire a sociedade e a faça evoluir para um movimento de transição.

Para isso, é necessário apelar a esses concidadãos para que saiam das tocas e se manifestem publicamente com o seu saber e o seu poder de cidadania. Não há soluções preconcebidas para despertar a luta pelo interesse comum. Continua a ser uma questão de consciência individual e do seu somatório como um todo, capaz de inverter o actual quadro político e económico-social.

Celebraremos, a 11 de Novembro, 40 anos de independência, em que destruímos mais do que construímos, sobretudo ao nível humano. Trata-se de uma excelente oportunidade para reflectirmos sobre o modo como a liberdade tem sido negada aos angolanos, apesar de 40 anos de descolonização formal.

Há duas questões centrais que devem nortear o debate público. O que é ser angolano hoje? Quais são as aspirações da sociedade na edificação desse ser angolano e com que valores?

Outras questões relevantes têm a ver com as ideias políticas tendentes à definição do tipo de Estado, de Nação e de identidade nacional que pretendemos, de um modo consensual, para Angola.

Esta discussão é importante e necessária para que se estabeleça uma plataforma de ideias mobilizadora da sociedade, especificamente do povo, para que este tome parte activa no processo de mudança, de forma construtiva, responsável e informada. Caso contrário, a falta de liderança e de uma visão comum pode tornar os grupos sociais mais primários e antagónicos entre si, destilando sentimentos de ódio, vingança e destruição, num conflito que poderia levar mais meio século a resolver.

A resposta cabal a estas questões poderá criar o ambiente propício à busca de consensos para a transição. Contrariamente ao nobre pensamento de Fernando Pacheco, esta não deve ser liderada nem pelo presidente José Eduardo dos Santos nem pelo actual Bureau Político do MPLA. A acção política da direcção do MPLA e do seu presidente continua a demonstrar que o regime procura pretextos para desencadear actos de violência política que permitam renovar as células do seu poder, com mais sangue angolano. São os casos de Monte Sumi, os 15 presos políticos e os abusos em Cabinda e nas Lundas. Esta tem sido a sua principal estratégia para manter o poder, em triângulo com a corrupção e a propaganda. José Eduardo dos Santos e o MPLA estão ultrapassados e têm de ser submetidos a uma nova ordem política.

O país precisa de lideranças visionárias, alicerçadas em valores morais e com capacidade de diálogo e de elaboração de agendas consensuais. Precisamos – nós, todos os angolanos – de trabalhar para a criação de uma consciência social dedicada ao bem comum.

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