A Acusação a Mavungo: Golfinhos Amarelos na Província do Bié

O juíz Jeremias Sofera, do Tribunal Provincial de Cabinda, proferirá a sentença sobre o julgamento de José Marcos Mavungo, acusado de crime de rebelião, na próxima segunda-feira, 14 de Setembro. Não existem fundamentos para a condenação do activista Mavungo, porque não há, objectivamente, qualquer crime que lhe seja imputável.

A ligação de Mavungo aos crimes que lhe são imputados é a mesma do Presidente José Eduardo dos Santos aos golfinhos amarelos que apareceram na província do Bié, onde não há mar.

Esta é a conclusão a que se chega depois de lida a acusação e consideradas as provas públicas carreadas nos autos.

Imputação objectiva: pressuposto do crime

A existência de um crime pressupõe o preenchimento de condições específicas, sem as quais não existe crime. São elas: A ocorrência de factos qualificados pela lei como crime; a imputação objectiva desses factos a determinada pessoa; a culpa (dolo ou negligência) dessa pessoa face a esses factos.

Sem factos específicos e sem ligação dos factos a uma pessoa não há, tradicionalmente, crime.

É claro, na doutrina e na jurisprudência de todo o mundo, e de Angola também – a não ser que esteja a inspirar-se nos processos moscovitas de Vyshinski, o torcionário procurador-geral de Estaline -, que a relação de causalidade entre o comportamento e o evento assenta na afirmação de que a acção é uma das condições do resultado, ou seja, que a acção co-causou o resultado. Como escreve Roxin, o nexo causal é uma condição necessária, ainda que não suficiente, para a existência de um crime, para a imputação do tipo objectivo.

Em resumo, para existir crime tem de existir uma ligação entre a pessoa e os factos de que ela é acusada. No caso em apreço, tal ligação não existe, como não existe qualquer ligação entre José Eduardo dos Santos e os golfinhos amarelos do Bié.

O direito penal angolano não pode ser o direito da imaginação. A imaginação pertence aos escritores e poetas, não aos dignos magistrados do Ministério Público. Esses lidam com factos, não com imaginação. Caso contrário, chamemos o escritor José Eduardo Agualusa para julgar Mavungo, pois estamos a apreciar ficção e não direito.

O processo equitativo: a necessidade de provas

A ligação entre os factos e a pessoa tem de ser comprovável em audiência pública de tribunal. Ora, a Constituição angolana garante, no seu artigo 29.º, n.º 4, que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. Ademais, o artigo 72.º garante a todo o cidadão o direito a um julgamento justo, célere e em conformidade com a lei. São estes os direitos fundamentais relativos à presença em tribunal consagrados na CRA e sujeitos a tutela efectiva. Isto quer dizer que a Constituição existe para ser cumprida – não é a fingir. Ou será que é?

A ideia de processo equitativo e de julgamento justo traduz-se em várias condições que têm de ser respeitadas: Juiz independente e imparcial, audiência pública, igualdade de armas entre advogados e Ministério Público, pleno acesso às provas e direito ao contraditório.

E naturalmente, um princípio fundamental clássico: o da presunção de inocência.

É nesta base que um arguido deve ser presente numa sala de audiências de um tribunal. O julgamento é um acto de procura da verdade, e não de confirmação das asserções do Ministério Público ou do poder político. “A justiça penal, com os seus interesses e garantias, tem, precisamente, como génese o ‘permanente conflito das relações Estado / indivíduo e da situação deste na comunidade política’, pelo que o processo penal acaba por ser ‘a expressão das concepções do Estado e do Direito.’” Um Estado Democrático de Direito tem de respeitar o arguido e as suas garantias, e não pode condenar sem provas. Um Estado Democrático de Direito não apresenta uma acusação como esta, porque tem vergonha!

As falhas materiais da acusação
    
Ora acontece que, no caso em apreço, lendo atentamente a acusação do Ministério Público, não se verificam as condições para a existência de um crime. Na realidade, os factos que surgem expressamente realizados pelo arguido José Marcos Mavungo são: o pedido de realização de uma manifestação, que constitui um acto lícito, protegido pelo artigo 47.º da Constituição angolana; e a presença numa reunião em que houve uma discussão acalorada, com troca de opiniões diferentes (a emissão e troca de opiniões é livre, nos termos do artigo 40.º da Constituição). Esses factos estão descritos nos artigos 1.º, 2.ºe 6.º da acusação.

Assim, os factos descritos na acusação e imputados a José Marcos Mavungo são:
Comunicação de intenção de realização de manifestação (que não se realizou) e discussão acalorada com membros dos órgãos do Governo provincial.

Nada mais é referido como tendo sido praticado por José Marcos Mavungo, de forma directa, ou enquanto instigador. Não surge qualquer evidência – testemunha, escuta ou outra – que demonstre uma ligação aos factos restantes da acusação.

A verdade é que, a partir do artigo 6.º da acusação, deixam de estar imputados directamente ao arguido quaisquer factos.

É relatada uma história de apreensão de explosivos e de panfletos, mas em nenhum local é carreado um facto que ligue o arguido a esses acontecimentos.

A grande falha da acusação é este “salto” inexplicável entre os artigos iniciais (1.º, 2.º e 6.º, por exemplo) e os restantes (7.º, 8.º, 9, 10.º, 11.º e 12.º).

Não se percebe nem é esclarecida a ligação do arguido a estes últimos. Veja-se em detalhe. No artigo 7.º da acusação, afirma-se que o arguido teria dito que faria a marcha “nem que fosse por força da ponta das baionetas”; todavia, não se concretiza onde terá produzido essas ameaças, quando as produziu e, sobretudo, não se comprova sequer que as tenha produzido. Os artigos 8.º a 11.º não contêm qualquer elemento objectivo que ligue o arguido aos factos. Nem um. É esta, repete-se, a grande lacuna da acusação: a inexistência de qualquer nexo relacional entre os factos descritos nos artigos 8.º a 11.º e o comportamento do arguido.

Há um salto literário da acusação, mas sem rede. Nada de factos. Só conjecturas.

Não há, portanto, o preenchimento da tipicidade objectiva do crime, que consiste no estabelecimento do nexo de causalidade (ou de causalidade potencial) entre a conduta e o resultado.

A conduta do arguido

Assim sendo, a conduta do arguido resume-se a ter requerido legitimamente o direito a manifestar-se, por um lado, e ter ido a uma reunião, por outro.

Não existe qualquer prova, sequer um indício do cometimento do crime de rebelião.

Ora, Mavungo vai preso por ter pretendido realizar uma manifestação?

Essa parece a verdade única deste processo.

Conclusões

Face ao exposto, todo o processo está ferido de ilegalidade, porque se está a indiciar alguém por um crime sem factos. O que leva a considerar que a detenção e posterior prisão preventiva são ilegais.
    
José Marcos Mavungo deve ser absolvido.

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