O Tribunal Constitucional e o Golpe contra o MPLA

A recente decisão do Tribunal Constitucional em declarar a inconstitucionalidade parcial do Regimento Interno da Assembleia Nacional, sobre a fiscalização dos actos do governo, é mais um golpe presidencial contra o seu próprio partido, o MPLA.

Segundo o Acórdão nº 319/2013 “a Constituição não confere à Assembleia Nacional competência para fazer interpelações e inquéritos ao Executivo, nem para convocar, fazer perguntas ou audições aos Ministros, uma vez que em Angola os Ministros de Estado, Ministros e Governadores desempenham funções delegadas pelo titular do Poder Executivo, que é o Presidente da República”.

Para o Tribunal Constitucional “ter o poder de convocar os ‘membros do Executivo’ seria o mesmo que ter o poder de convocar o Presidente da República que é o Titular do Poder Executivo, o que não é constitucionalmente aceitável”.

O referido Acórdão é apenas a formalização, na realidade, de uma decisão tomada em 2010 pelo então presidente da Assembleia Nacional,  António Paulo Kassoma, através do Despacho n° 02177/03/GPAN/2010. António Paulo Kassoma havia suspendido temporariamente a “realização de qualquer acção de controlo e de fiscalização das actividades do Executivo” por parte do Parlamento.

No entanto, em 2012, a Assembleia Nacional, detida pelo MPLA com a maioria absoluta de 82 por cento, aprovou o seu Regimento Interno. A 27 de Abril de 2012, o presidente da República promulgou a Lei Orgânica que aprovou o referido regimento – Lei nº 13/12, de 2 de Maio.

Tendo a Constituição sido aprovada em 2010, por que razão o presidente promulgaria uma lei inconstitucional que feria os seus poderes? A resposta é simples. Era o ano das eleições e era preciso passar a ideia de que o presidente não estava acima da lei. Por exemplo, os seus actos, enquanto chefe do governo, poderiam ser fiscalizados pelo parlamento. Era um engodo para esconder o carácter fascista da Constituição sobre os poderes presidenciais.

Quais são os artigos considerados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional?

O Regimento Interno da Assembleia Nacional define as audições parlamentares como sendo “reuniões organizadas por Comissões Parlamentares para ouvir membros do Executivo, funcionários ou especialistas de quaisquer áreas, para esclarecimento de assuntos de interesse para os trabalhos parlamentares” (Art. nº 268).

A referida lei estabelece que a “Assembleia Nacional pode fazer interpelações, em debate, sobre matéria de política sectorial, aos Ministros de Estado, Ministros e Governadores Provinciais, mediante requerimento de qualquer Grupo Parlamentar” (Art. nº 269, 1º).

O regimento confere poderes a qualquer deputado, através de solicitação prévia ao presidente do seu grupo parlamentar, para interpelar ministros de Estado, assim como ministros e governadores provinciais (Art. nº 270).

Por último, os procedimentos para as intervenções dos deputados interpelantes e dos governantes interpelados também são, por consequência, declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional.

Com extraordinária franqueza, o Tribunal Constitucional cita o Decreto Presidencial nº 6/10, de 24 de Fevereiro, sobre a delegação de poderes aos seus ministros de Estado e ministros. O referido tribunal esclarece que “não existe uma formulação genérica nem específica sobre a relação institucional entre o Executivo [governo] e os outros órgãos de soberania”.

Essa indefinição leva o tribunal a aconselhar os outros órgãos de soberania e a sociedade em geral, a entenderem que “a relação institucional com os outros órgãos de soberania é sempre reservada ao Presidente da República, não no sentido de que deve ser ele a ter participação directa e activa, mas sim no sentido de que deve ser ele a decidir, caso a caso, ou delegar poderes de forma inequívoca para o efeito”. Ou seja, a relação do governo com os poderes legislativo e judicial depende exclusivamente da vontade unipessoal do presidente José Eduardo dos Santos. Assim, por exemplo, so constitucionalista ar que nada possa incomodar o presidente. Como bem descreveu Jorge Miranda, no seu estudo da Constituiçó se pode julgar um ministro corrupto se o presidente autorizar.

Na realidade, essa decisão revela apenas a paranóia do regime em assegurar que nada possa incomodar o presidente. Como bem descreveu o constitucionalista Jorge Miranda, no seu estudo da Constituição angolana, o modo de eleição simultânea do presidente e dos deputados “faz dele, presidente e primeiro candidato do partido vencedor, o chefe da maioria parlamentar e lhe permite domínio total da Assembleia”.  O que se pretende, pois, é impedir que a oposição, representada no parlamento, faça perguntas incómodas aos ministros e governadores, meros delegados da acção governativa unipessoal de José Eduardo dos Santos.

 

O Golpes Judiciais do Presidente

Em 1998, quando França Van-Dúnem, então membro do Bureau Político do MPLA, tentou exercer alguns dos seus poderes constitucionais enquanto primeiro-ministro, o presidente da República inquietou-se e pediu um parecer ao Tribunal Supremo.

Por sua vez, o Tribunal Supremo decidiu que “o poder de direcção e chefia do Governo” eram da exclusiva competência do presidente da República. No entanto, a Lei Constitucional atribuía ao primeiro-ministro as competências de “dirigir, conduzir e coordenar a acção geral do Governo” (Art. 114º, nº 1).

Um mês depois, o presidente exonerou França Van-Dúnem, nomeou um governo sem primeiro-ministro e manteve a vacatura do cargo por três anos.

Na altura, o actual juíz do Tribunal Constitucional, Raúl Araújo, reputou de inconstitucional a medida presidencial. O intermitente conselheiro presidencial Carlos Feijó também partilhou, a seu modo, a  mesma opinião.

Em 2005, o presidente recorreu, uma vez mais, ao Tribunal Supremo em busca de legitimidade para lhe aparar outro golpe constitucional sobre os mandatos presidenciais.

O presidente requereu a anulação dos seus mandatos presidenciais, cujos termos o impediam de concorrer novamente à presidência. O Tribunal Supremo decidiu que José Eduardo dos Santos nunca tinha cumprido um mandato presidencial, porque, até então, mantinha-se no cargo apenas como um presidente em exercício.

“Não vamos questionar se é ou não legítimo o mandato assim regulado, quer no plano jurídico, de que já referimos fundamento bastante, quer no plano político. Isto porque o problema da interpretação constitucional tem sempre um elemento político que não deve ser desligado do elemento jurídico, o que justifica a fragilidade interpretativa com cânones juridicamente restritos”, argumentavam, de forma supérflua, os juízes do Tribunal Supremo.

O presidente tem usado, de forma combinada, o poder militarizado e judicial para reduzir o MPLA a um simples acessório do seu poder pessoal. A história política do MPLA tem sido gradualmente enterrada pelo seu uso político como o secretariado da corrupção e dos desmandos presidenciais.

O MPLA que defendia o povo já não existe.

Aqueles que afirmam a existência de um Estado democrático e de direito em Angola têm tanto de mau humor e cinismo quanto o presidente José Eduardo dos Santos.

Angola é o Estado dele. Essa é a actual tragédia da maioria dos angolanos. E isso é o que tem de mudar. O Estado tem de ser devolvido aos seus legítimos soberanos, o Povo.

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