A Farsa da Amnistia

Parece que Virgílio de Fontes Pereira – antigo ministro de várias pastas do governo e actual líder do grupo parlamentar do MPLA – é jurista e tem um mestrado em Ciências Político-Jurídicas.

Foi este suposto mestre jurista quem proferiu a seguinte inaudita afirmação: “A concessão de amnistia a todos os crimes comuns, puníveis com pena de prisão até 12 anos, representa um acto de magnanimidade de Sua Excelência o Presidente da República.”

Falamos de Virgílio de Fontes Pereira como hipotético mestre jurista porque custa a crer que um verdadeiro jurista dissesse tamanho disparate, a não ser que pretendesse reconhecer que Angola é uma ditadura unipessoal, onde todo o poder provém do presidente da República. A não ser que quisesse assumir que as formulações constitucionais angolanas não passam de meros adornos da farda ditatorial de José Eduardo dos Santos, e que a Assembleia Nacional serve apenas de palco a actores bem remunerados cujo papel é aplaudir o ditador-presidente.

Como saberá qualquer jurista que se preze, a Constituição angolana não confere qualquer poder ao presidente da República para conceder amnistias, apenas indultos e comutações de penas. As amnistias são forçosamente concedidas pela Assembleia Nacional. Portanto, a magnanimidade coube à Assembleia Nacional, e não ao presidente. Aparentemente, trata-se de um mero detalhe jurídico, mas na verdade é um dos muitos indicadores da irrelevância prática da Assembleia Nacional e do poder presidencial absoluto. O presidente tomou a iniciativa, mas a decisão é da Assembleia. Há que repor a ordem jurídica das coisas.

Foi esta a primeira farsa da amnistia.

Para além de servir o propósito de endeusar o presidente em pré-eleições gerais de 2017, a amnistia é também uma solução hábil para duas trapalhadas na área da justiça: a questão dos 15+2 e a degradação do sistema judicial. Quem está preso? Que sentença cumpre? Por que está preso? Em Angola, muitas vezes não há resposta para este tipo de perguntas.

A verdade é que os casos 15+2 e Marcos Mavungo e as campanhas e reportagens sobre os presos políticos e as prisões puseram a nu um universo gulaguiano tropical, em que muitos juízes de primeira instância actuam de forma arbitrária e desconhecedora da lei, a polícia prende sem razão, as prisões têm condições desumanas, e muitos detidos ficam por lá a apodrecer sem razão.

Perante este quadro desolador da justiça, não havia dinheiro, nem força política para encontrar uma solução digna de um Estado de Direito, pelo que se optou pela amnistia. A amnistia é uma lavagem de face para a degradada justiça angolana.

Foi esta a segunda farsa da amnistia.

A terceira farsa da amnistia é a que tem consequências mais graves para o futuro do país. Sabe-se que estão em curso vários processos e queixas nacionais e investigações internacionais sobre os desmandos financeiros de altos dirigentes angolanos, a começar pelo presidente, seus filhos e generais associados. Ora, esta amnistia “limpa” todas as queixas existentes em território nacional e permite utilizar no estrangeiro um argumento já usado pelos tribunais portugueses em casos de alegados crimes de branqueamento de capitais: se o crime original não foi considerado crime, então a lavagem de dinheiro também não o é.

Aliás, o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Rui Mangueira, tem tanta consciência deste facto que já veio muito habilmente dizer que, mesmo que os crimes sejam abrangidos pela amnistia, nos termos da Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento ao Terrorismo, as pessoas que tenham desviado dinheiros públicos têm de os devolver. Com a devida vénia, o senhor ministro deve estar a gozar. Como é possível provar que alguém desviou dinheiro sem uma investigação criminal? E como é que se pode instaurar uma investigação criminal sobre casos amnistiados?

A verdade é que, face a esta amnistia, a maior parte dos crimes económico-financeiros cometidos até 2015 deixam de existir, desaparecem para todos os efeitos. Ninguém os vai investigar. Podemos dizer que a lavagem de dinheiro foi lavada pela amnistia.

Contudo, a história pode não acabar aqui. Segundo a jurisprudência, qualquer amnistia que atente contra os direitos humanos fundamentais de um povo é considerada nula. E por isso, se um dia se comprovar que os desvios de dinheiro do Estado foram de tal monta que impediram o cumprimento da tarefa estatal de promover o direito à educação e à saúde, pode-se pensar em declarar nula a amnistia para esses casos de grande apropriação de dinheiros públicos. Portanto, no fim, a amnistia não salvará os corruptos.

A História terá a última palavra.

 

 

 

 

 

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