Abuso de Prisão Preventiva: uma Desumanização

Em Outubro passado, escrevi um artigo para o jornal português Expresso sobre a desumanidade que caracteriza a acção dos órgãos judiciais em Angola. Refutei, pela mesma via, a efectividade do indulto decretado pelo presidente José Eduardo dos Santos para a libertação de presos que tivessem cumprido metade da sua pena e que tivessem sido condenados a uma pena de até 12 anos. A propaganda alardeava “milhares de reclusos são libertados graças ao indulto presidencial”.

Citei, como exemplo aberrante, o caso de João Domingos da Rocha, de 26 anos, que se encontrava há sete anos em prisão preventiva por suspeita de furto de roupa usada. Falei também de Justino Longia, em prisão preventiva há cinco anos, por suspeita de furto de roupa usada. Pelo furto assumido de 300 euros, Bernardo Umba Samuel, de 30 anos, cumpria o seu quinto ano em regime de prisão preventiva e também mencionei o seu caso. Todos se encontravam detidos na Comarca Central de Luanda (CCL).

Logo após a saída da matéria, alguém importante ordenou a verificação dos factos junto dos detidos. A 22 de Dezembro todos eles foram libertados, incluindo um quarto que eu não havia mencionado, José Ventura. Este cumpria prisão preventiva desde 1 de Junho de 2008, por suspeita de furto de varões para construção. No Dia da Independência, a 11 de Novembro, fora transferido para o Hospital-Prisão de São Paulo com uma infecção pulmonar.

O excesso de prisão preventiva nas cadeias é praticamente um ritual da Procuradoria-Geral da República e da Polícia Nacional. A libertação destes quatro detidos foi mais uma das medidas com que o regime se limita a remendar situações potencialmente embaraçosas para o poder. Nunca o faz por uma questão de justiça. Sente-se mal em agir de forma humana, humanizante.

Por exemplo, Praia Eduardo, de 26 anos, entrou no quinto ano de prisão preventiva, na CCL, por suspeita de furto de um telemóvel. Já estaria em liberdade se tivesse sido julgado e condenado. Zinga Afonso Diandanda, de 26 anos, furtou uma motorizada, entretanto paga à vítima pelos seus familiares. Está há quatro anos detido na CCL. “Nunca fui ouvido por um procurador”, reclama.

Já o caso de João Manuel António, de 25 anos, é caricato, Está preso há três anos e sete meses por ter defecado na obra de construção de uma residência em Viana. O dono da obra encontrou-o no acto, em “flagrante delito”, acusou-o de ser ladrão. Foi interrogado apenas por um investigador na Esquadra do Kapalanca, em Viana, e continua na CCL sem saber de mais nada.

João Caliata, de 44 anos, tem uma história bizarra. Foi à casa da sua irmã, na Boavista, buscar uma botija de gás butano e outros haveres, porque esta decidira regressar à província. Por volta das 16h00 cruzou-se no caminho com dois agentes policiais, que imediatamente o acusaram de ser ladrão e o espancaram, a ele e ao amigo que o acompanhava, no local da abordagem. É mantido em regime de prisão preventiva, há quatro anos, por causa desta história. “Já fui ouvido pelo procurador, na II Divisão da Ingombota, que não disse nada”, explica. Não tem apoio familiar, porque os seus parentes residem na Huíla, de onde é originário.

Há um problema maior. O excesso de prisão preventiva de pilha-galinhas tem causado a superlotação das cadeias e uma multitude de problemas que configuram sérias violações dos direitos humanos.

No sábado passado, a Cadeia de Viana expediu para a CCL mais 50 detidos, por falta de espaço. Do referido grupo, 10 foram encaminhados para a Caserna 12, que já alberga 79 detidos.

“Eles chegaram aqui esqueléticos, cheios de infecções, como sarna. Muitos vieram a urinar e a escarrar sangue. A situação é tão grave que seis deles tiveram de ser transferidos para a enfermaria”, explica um agente prisional que prefere o anonimato. Dos seis, três aguardam por evacuação para o Hospital-Prisão de São Paulo devido ao seu estado anémico.

“Muitos que vêm de Viana nem sequer conseguem pôr-se de pé, de tão desnutridos que estão”, lamenta a fonte. Esta é uma situação antiga. Durante a minha estadia na Prisão de Viana, em 1999, por ter chamado o camarada Presidente de corrupto e ditador, deparei-me com o que os detidos chamavam a “Cela dos Judeus”: a cela onde os serviços prisionais concentravam os detidos já esqueléticos e incapazes de se manterem de pé por causa da fome e de maleitas que poderiam ser tratadas facilmente. Dia sim, dia não, essa cela produzia um morto. O que mudou, afinal?

Note-se, por exemplo, o Bloco A, Caserna 4, a cela em melhores condições na Penitenciária de Viana, reservada a militares, agentes policiais e afins. A caserna alberga 65 detidos, quando deveria ter no máximo 20. Por falta de espaço, via de regra, dois dormem na casa de banho.

A falta de água é outro factor para a propagação de infecções, por falta de higiene dos detidos. “A prisão dá-nos água, no máximo cinco litros para cada, duas vezes por mês, que temos de usar para beber, lavar a roupa e tomar banho. A situação é grave. Só Deus nos mantém vivos aqui”, denuncia um agente policial detido.

Nem mesmo os agentes policiais escapam à mão pesada da arbitrariedade normalmente reservada ao comum dos cidadãos e aos críticos do regime. Três agentes da Polícia Nacional da 48ª Esquadra de Viana – Cristo Manuel de Sousa, Lubambi Pedro Malanza e Jorge Francisco Simão – estão detidos há dois anos e três meses por suspeita de extorsão de 240 mil kwanzas a um cidadão desconhecido. “Fomos três vezes ao tribunal para a acareação, mas o queixoso nunca apareceu, porque não há queixoso no processo. Só eles, os chefes que ordenaram a nossa detenção, é que sabem quem é o queixoso”, denuncia um dos agentes. Estranham que o processo tenha chegado a tribunal sem nunca terem sido ouvidos por um procurador e sem nunca ter havido acareação. Estiveram em tribunal, pela última vez, a 23 de Janeiro de 2015, há um ano.

A Procuradoria-Geral da República deve criar brigadas móveis de procuradores junto das penitenciárias para corrigir estes casos de excesso de prisão preventiva com a maior celeridade possível. Em 2000, a Procuradoria tomou essa iniciativa na Penitenciária de Viana e mais de mil detidos foram mandados para casa. É o mínimo que pode fazer para corrigir tantas injustiças.

 

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