Mário Faustino: O Activista Detido e Esquecido

Desde o dia 20 de Junho último, muito se tem dito e escrito sobre os activistas angolanos detidos por acusação de tentativa de golpe de Estado. Contudo, tem permanecido no esquecimento o caso do activista Mário Faustino, detido desde 27 de Maio passado por tentativa de manifestação.

Em exclusivo ao Maka Angola e a partir da cela do Comando Provincial da Polícia Nacional em Luanda, onde se encontra detido, o activista conta ter sido torturado por um brigadeiro das Forças Armadas Angolanas (FAA), numa unidade militar. Segundo o seu depoimento, o brigadeiro em causa terá afirmado que Mário Faustino merecia ser atirado ao alto-mar, aos tubarões, ou a um rio com jacarés.

O procurador-geral da República, general João Maria de Sousa, e o ministro do Interior, Ângelo Tavares, vieram a público falar sobre o zelo dos seus órgãos no respeito pelo princípio da legalidade, no caso específico da detenção dos 15 alegados “golpistas” e de outras acções contra as vozes críticas do regime.

Ora convenhamos que o caso de Mário Faustino revela o estado doentio e a incoerência das acções dos órgãos de justiça. A 18 de Junho, a Polícia Judiciária Militar remeteu, ao Comando Provincial da Polícia Nacional em Luanda, o Processo 453/015, assinado pelo major Bernardo José Quilombo, referente à instrução processual de Mário Faustino. Este reafirma nunca ter sido militar. Algumas caricaturas contra o presidente José Eduardo dos Santos, retiradas da internet, foram anexas ao processo como provas da conduta alegadamente criminosa do activista.

Por sua vez, a 19 de Junho, a polícia registou o detido com o número de processo 4527/015 OP. 

Contactado por Maka Angola, o procurador Cangombe, instrutor do processo junto do Serviço de Investigação Criminal (SIC),  refere que somente após a instrução do processo  “prestaremos as devidas  informações”.

Eis o relato do caso de Mário Faustino.

A primeira detenção

A 2 de Maio, Mário Faustino, com 28 anos de idade, foi detido pela Polícia Nacional no momento em que tentava juntar-se a uma manifestação de antigos combatentes no Largo da Independência, entretanto reprimida. A polícia deteve também oito antigos combatentes na mesma operação.

“Os polícias espancaram-me com porretes, barras de ferro e paus, como é hábito. Levaram-me, primeiro, para a esquadra da Ilha.” O activista conta ter sido transferido, pouco depois da sua detenção, para o quartel-general da Região Militar de Luanda, na companhia dos outros oito detidos, incluindo uma mulher cuja identidade não esclareceu.

Durante 12 dias, Mário Faustino foi sujeito a sevícias diárias. “Fui regularmente torturado por cinco majores e um tenente-coronel. Cada um chegava, tirava-me da cela, acusava-me pessoalmente de querer causar uma nova guerra no país, espancava-me, devolvia-me à cela e ia-se embora”, revela o activista.

Segundo Mário Faustino, as forças da ordem queriam “que eu mostrasse o chefe [das manifestações]. Respondi sempre que as manifestações não tinham um chefe. Se havia, eu não sabia quem era o chefe.”

O activista acabou por ser libertado a 14 de Maio, sem nunca ter sido ouvido pelo procurador-militar, de acordo com o seu depoimento. “Apenas um coronel veio advertir-me, no acto da minha soltura, que eu perderia a vida caso continuasse a participar em manifestações”, relata.

“Eu disse ao coronel que se eu tivesse de ser morto por participar numa manifestação, então seria melhor o governo rasgar primeiro a Constituição, que é a causa deste problema [tentativas de manifestação]”, prossegue o activista, em tom de desafio.

A segunda detenção

Mário Faustino insiste no pleno exercício do que considera ser o seu direito constitucional de manifestação. Segundo o Art.º. 47.º, 1.º, da Constituição, “é garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas, sem necessidade de qualquer autorização e nos termos da lei”.

Ora, Faustino juntou-se a uma nova tentativa de manifestação, 13 dias após a sua libertação, e acabou novamente detido, a 27 de Maio. O relato sobre o que lhe tem acontecido às mãos das autoridades é aterrador.

No acto de detenção, no Largo da Independência, os agentes policiais trataram à pancadaria sete activistas, incluindo Mário Faustino e os veteranos Nito Alves e Adolfo Campos.

Adolfo Campos, por exemplo, conta ter sido arrastado pelo asfalto por agentes policiais, até lhe esfolarem as costas. Conforme testemunho do próprio, durante a tareia, com porretes, pontapés e bofetadas, fracturaram-lhe ainda o braço direito.

Já na esquadra da Boavista, para onde os activistas foram levados, os agentes policiais receberam ordens para transferir Mário Faustino, tomado como o suposto “cabecilha da manifestação”, mais uma vez para o Quartel-General da Região Militar de Luanda.

“Tentámos pressionar para que o Mário não fosse separado do nosso grupo de detidos. Tentámos defendê-lo, agarrando-o, mas fomos espancados”, lamenta Adolfo Campos.

Tubarões ou jacarés

“No quartel, os militares disseram-me que eu tinha de ser morto, porque era fraccionista”.

“Um brigadeiro e um comissário [da Polícia Nacional] foram ter comigo [à cela], no dia seguinte, e afirmaram que eu merecia ser atirado aos tubarões no alto-mar ou aos jacarés no rio, porque eu queria provocar uma guerra”, denuncia Mário Faustino. Porém, o detido não identificou os oficiais que terão falado consigo, já que estes não terão dito o seu nome ou cargo ocupado; foi apenas capaz de lhes identificar as patentes, uma vez que se encontravam fardados.

No segundo dia, um major da Polícia Judiciária Militar interrogou o detido. “O major perguntou-me se eu estava a ser apoiado por algum partido político e quis saber quanto eu recebia”, prossegue Mário Faustino.

De acordo com as declarações do próprio, ao responder negativamente à questão, o major perguntou-lhe de que forma se sustentava. Mário Faustino afirmou ser desempregado e activista. “Disse que continuarei a defender a causa do povo angolano”, remata.

A Região Militar de Luanda manteve encarcerado Mário Faustino por mais 12 dias. Transferiu-o, a posteriori, para uma cela solitária numa instalação militar que o activista não soube precisar. “A Polícia Militar escoltou-me de carro para uma outra unidade. Eu não vi nada. Quando chegámos, alguém me disse apenas que eu estava na Cidade Alta [zona do Palácio Presidencial e do Ministério da Defesa].”

“[Os militares] despiram-me a roupa toda e fiquei nu, sob comando de um brigadeiro e de um tenente-coronel fardados.”

“O brigadeiro disse-me que a intenção deles era virem buscar-me à cela, durante a noite, para me atirarem ao alto mar. Depois, os dois oficiais espancaram-me com barrotes e porretes por todo o corpo.”

De acordo com informações por si prestadas, Mário Faustino passou perto de 20 dias numa cela solitária, sem direito a água e alimentação. “Por pena, alguns guardas, às escondidas, davam-me água e pão”, revela.

Como forma de chamar atenção para o seu calvário, Mário Faustino conta que teve apoio de um soldado que lhe “ofereceu” um isqueiro. “Tive de incendiar o meu colchão para me retirarem daquela cela. O soldado tinha pena de mim e achava que os seus chefes me queriam matar ali mesmo.”

Depois do incidente, Mário Faustino foi transferido para a direcção provincial do Serviço de Investigação Criminal (SIC), nas instalações do Comando Provincial da Polícia Nacional, onde se encontra actualmente.

“O tenente-coronel batia-me muito com um barrote, enquanto quatro soldados me agarravam.”

Na sexta-feira passada, já no comando provincial, o activista foi ouvido pelo procurador Cangombe.

“O procurador mostrou-me o processo e perguntou-me se já tinha sido ouvido por outro procurador. Respondi que não”, conta.

Segundo Mário Faustino, o procurador perguntou-lhe o que fez e o que o terá levado à prisão.

Apesar de não ter sido ouvido pelo procurador militar durante a sua detenção no quartel-general da Região Militar, Mário Faustino soube então que lhe foi instruído pela Polícia Judiciária Militar. No referido processo, estavam anexas, como provas do crime, caricaturas do presidente José Eduardo dos Santos que circulam nas redes sociais. Numa dessas caricaturas, o presidente está amarrado e a ser escoltado por agentes do FBI, o bureau de investigação federal dos Estados Unidos da América.

Mário Faustino trabalhou até 2010 na Casa de Segurança do presidente da República, como civil colocado na base da Brigada Especial de Limpeza, no Kikolo, em Luanda. O activista fez parte do grupo original dos ora célebres e martirizados activistas Alves Kamulingue e Isaías Cassule. Ambos se destacaram, com Alberto Santos, na organização dos despedidos da Casa de Segurança, incluindo ex-guardas presidenciais, para uma manifestação contra o presidente José Eduardo dos Santos. Alves Kamulingue foi fuzilado a 27 de Maio de 2012, dia da malograda manifestação, por um grupo de operativos da Polícia Nacional e do Serviço de Inteligência e Segurança de Estado (SINSE). Isaías Cassule foi assassinado por asfixia, e o seu corpo foi atirado aos jacarés por outro grupo de operativos sob supervisão directa do comité provincial do MPLA em Luanda.

 

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