Ministro do Interior Coordena Operações de Repressão

“Essa foi a maior surra que apanhei. Preferia ter estado preso do que ter sido torturado dessa forma pela polícia”, explica Nito Alves estudante de 18 anos, um dos mais de 30 manifestantes detidos a 27 de Maio pela Polícia de Intervenção Rápida (PIR) no Largo da Independência, em Luanda.

Os manifestantes tentaram concentrar-se no centro do Largo, onde se encontra a estátua do primeiro presidente de Angola, Agostinho Neto.

Um grupo de jovens havia informado, há semanas, a Comissão Administrativa da Cidade de Luanda (CACL) sobre a sua pretensão de organizar uma vigília de recordação do 27 de Maio de 1977, sob o lema “Chega de Chacinas”. A CACL não respondeu à informação.

O advogado Albano Pedro realça que o silêncio da CACL, sobre a comunicação de manifestação, “é sinónimo de autorização”. 

Segundo o advogado, “há autorização tácita quando os interessados comunicam, com a antecedência consagrada na lei, e não há resposta das autoridades“.

Os massacres de 1977, que ocorreram naquele dia e a posteriori, foram protagonizados pelas forças leais a Agostinho Neto, contra parte significativa do Bureau Político e Comité Central do MPLA, do alto comando das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), dos quadros da função pública e outras forças que se opunham à sua forma de governar ou eram suspeitas, bem como dezenas de milhares de cidadãos.

Como ilustração dos traumas que o 27 de Maio causou no seio do próprio regime, o actual comandante-geral da Polícia Nacional, comissário Ambrósio de Lemos, escapou ao fuzilamento, na altura, suspeito de colaborar com os oponentes de Agostinho Neto. O seu irmão mais novo, o comissário político das FAPLA Virgílio Freire dos Santos “Betinho Zamba”, não teve a mesma sorte. Foi fuzilado sem julgamento, enquanto Ambrósio de Lemos passou mais de dois anos detido, também sem julgamento.

Um alto oficial da Polícia Nacional revelou ao Maka Angola desconhecimento do Comando-Geral da Polícia Nacional sobre os detalhes da operação de repressão contra os manifestantes.

O jornalista da Rádio Despertar, Serrote Simão Hebo, ao enviar um despacho em directo, a partir do largo, ouviu um superintendente da Polícia Nacional, que se encontrava ao seu lado, a ordenar a um subordinado a sua detenção imediata.

“O inspector apreendeu-me o telefone, o gravador e levou-me para uma carrinha policial onde obrigou-me a ficar deitado debaixo de um banco corrido. Depois de 20 minutos a porta-voz do Comando Provincial, Engrácia Costa, pediu que me retirassem da carrinha”, informa o jornalista.

De acordo com Simão Serrote, a porta-voz encaminhou-o à Unidade Operativa de Luanda, onde permaneceu duas horas, sentado na recepção. “Depois, a porta-voz apareceu , devolveu o meu equipamento e saí em liberdade”, conclui o repórter.
 

Os Sequestrados

Uma hora antes da detenção de Nito Alves, Edson Miguel, de 34 anos, professor desempregado, Bernardo, Panguila e Tito foram capturados a mais de três quilómetros do local de concentração da manifestação.

“Um dos agentes da polícia disse-nos que Angola tem dono e o dono é José Eduardo dos Santos. Disse-nos que apenas estavam a cumprir ordens e repetiu: ‘Vocês são novos e não sabem que não vão mudar nada porque este país é do José Eduardo dos Santos’”, narra Edson Miguel.

Após essa introdução, vários agentes deram início à sessão de espancamentos dos quatro jovens com as coronhas de armas, pontapés e chicote de cavalo-marinho. 

“Com a porrada e o discurso do polícia, o Bernardo disse aos agentes que, querendo ou não, vamos morrer em nome da liberdade. Partiram-lhe o braço esquerdo com uma coronhada”, explica a testemunha.

Os quatro jovens foram levados numa viatura Land-Rover para um apartamento vazio, num condomínio nas imediações da Feira Internacional de Luanda (FILDA). Aí foram separados, cada um numa dependência, e sujeitos a tortura. Outros 12 jovens detidos no local e vistos pelos quatro foram transportados para lugar incerto.

“O meu torturador disse que foram mandados por José Eduardo dos Santos e ameaçou matar a minha família caso continuemos a protestar”, denuncia Edson Miguel,

Por volta das 13h00 de hoje, um novo grupo de agentes procedeu à transferência dos jovens do apartamento, conduzindo-os até ao Bairro Capalanca, em Viana, onde foram libertados.

“’A democracia vai vos levar aonde? Estão a lutar para quê?’ Foi o que os novos agentes nos perguntaram antes de nos soltarem”, sublinha Edson Miguel.

O Terror da PIR

No Largo da Independência, “fecharam-nos no carro celular da Polícia de Intervenção Rápida (PIR). Éramos 17 ao todo. Um agente atirou uma granada de gás lacrimogéneo dentro da viatura e fechou as portas”, revela Nito Alves.

Raul Mandela, desempregado de 28 anos, ainda tem o peito inflamado onde o invólucro da granada lhe raspou. “Fiquei sem ar e desmaiei logo”, conta.

“Tivemos de urinar nas nossas camisas para cobrirmos as nossas bocas para não desmaiarmos. Mas,o Pedrowski Teca e o   Saleio também desmaiaram”, continua o interlocutor.

Os detidos foram a seguir transportados para o comando da PIR, onde os obrigaram a manter-se estirados de barriga para baixo e a olhar para o chão, “para não reconhecermos os rostos dos agentes encarregues de nos torturarem”, diz.

“Fomos atacados com porretes que dão choques eléctricos, e pisoteados com botas, ao ponto de até as pessoas que não acreditam em Deus terem pedido a Sua intervenção, para a salvação”, descreve Adolfo Campos, um veterano das manifestações, detenções e torturas policiais. “A pancadaria foi tanta, que um dos manifestantes defecou ali mesmo”, prossegue.

Desde Março de 2011, grupos informais de jovens têm-se mobilizado para exercer o direito constitucional à manifestação, inspirados pela Primavera Árabe.

Durante a pancadaria, mais dois indivíduos foram encaminhados ao carro de tortura. Tratava-se de Manuel de Victória Pereira, de 60 anos, secretário para a Formação e Cultura do Bloco Democrático, e Serafim Simeão, secretário provincial da Juventude Patriótica de Angola , o braço juvenil da CASA-CE.

Manuel de Victória Pereira vive nos arredores do Largo da Independência e atravessa-o todos os dias para ir trabalhar no Instituto Normal de Educação dos Maristas, a menos de um quilómetro do largo, onde lecciona Português e Literatura. No seu regresso, foi abordado por alguns jovens seus conhecidos, que o informaram da detenção de Adolfo Campos e outros. Distanciou-se deles e dirigiu-se ao Parque da Independência, uma área vedada com quiosques e bares. Pagou os 50 kwanzas de acesso ao parque. Sentou-se na esplanada e pediu uma cerveja bem gelada.

“Nem sequer abri a garrafa. Apareceram vários agentes que me convidaram para ir falar com o ‘chefe’. Quando saí do local estava cercado por agentes da PIR com escudos que me levaram à força para o carro celular, onde me encontrei com o Serafim. Ali começaram a dar-me cacetadas”, descreve Victória Pereira.

Chegados ao Comando da PIR, “obrigaram-nos a tirar as camisas para vendarmos os olhos, enquanto nos espancavam e a polícia política nos fotografava. Insultavam-me como  branco de merda, estrangeiro, mulato barbudo”, conta o professor.

Serafim Simeão passou pelo Largo da Independência, ao volante do seu carro, em direcção a São Paulo, onde iria frequentar um curso. Parou no semáforo, à espera do sinal verde. “Por curiosidade, decidi tirar uma fotografia, com o meu telemóvel, ao grande aparato policial que havia ali, para a minha página no Facebook”, explica o líder juvenil. 

Uma viatura policial perseguiu-o e obrigou-o a encostar a sua viatura junto a umas bombas de combustível. “Apreenderam-me o telemóvel, algemaram-me e levaram-me para o carro da polícia”, conta.

“Estou muito machucado. Levei muitos pontapés nas costelas, pisotearam-me nas costas, bateram-me com porretes. Os agentes da PIR usavam todos máscara para cobrir os rostos”, descreve Serafim Simeão.

Segundo testemunho de Adolfo Campos, os agentes da polícia de elite reservaram um tratamento especial a Manuel de Victória Pereira por ser branco, membro da oposição e pela sua idade. “Foi o mais castigado”, adianta a testemunha.

Raul Mandela acrescenta que a polícia, depois da pancadaria, aspergiu as vítimas com um spray de gás pimenta e fechou novamente as portas do carro celular para lhes causar asfixia.

Membro do Movimento Revolucionário, um dos grupos informais de jovens, Adolfo Campos revela que, após o acto de brutalidade, os efectivos da PIR manobraram um camião de lona, cuja porta da carroçaria dava para a porta do carro celular, parando a uma certa distância. Entre as duas viaturas perfilharam-se agentes com porretes e outros instrumentos de violência.

“Fomos obrigados a saltar de um carro para o outro, enquanto os agentes nos atacavam com porretes, os que caíam entre as viaturas sofriam mais com pontapés também, até nos rostos”, descreve.

Adolfo Campos refere ainda que Serafim Simeão também mereceu tratamento especial, por ser da oposição e corpulento. “No segundo carro, o camião de lona, foi o que mais surra apanhou. Parecia o fim do mundo”, lamenta.

Durante o trajecto para fora de Luanda, os agentes empregaram a tortura psicológica, para além dos pontapés e açoites regulares, ainda de acordo com Adolfo Campos. “Ameaçavam-nos constantemente de que estávamos a ser levados para um campo de fuzilamento. Às tantas decidimos manter a calma, porque se era para morrermos, então assim seria”, enfatiza.

A coluna da PIR libertou Manuel de Victória Pereira no Quilómetro 30, em Viana, tendo feito o mesmo com os restantes na localidade de Catete, a mais de 60 quilómetros da cidade, junto à berma da estrada nacional.

“Eu perguntei [aos captores]: ‘Estão a abandonar-nos aqui, e se algum de nós morrer, quem se responsabilizará? Um dos agentes respondeu-nos que estavam apenas a cumprir ordens e disse-nos que era indiferente. ‘Vocês já são mortos’”, relata Adolfo Campos.

Como prémio adicional pela missão, os agentes da PIR apropriaram-se dos bens dos jovens que lhes despertaram interesse, incluindo dinheiro e o anel de casamento de Adolfo Campos. “Para além de assassinos, são gatunos”, queixa-se.

Por 20,000 kwanzas (US $200), um camionista  aceitou transportar os “desterrados” até a uma distância de pouco mais de cinco quilómetros do Largo da Independência, onde depois foram recolhidos por amigos solidários.

David Saleio, um dos detidos, teve de ser levado imediatamente a uma unidade hospitalar privada, para ser assistido devido ao estado de inflamação em várias partes do corpo, que o impedia de caminhar.

O Grupo do Chabalala

“Pensei que hoje seria o dia do nosso fuzilamento”, desabafa Alex Chabalala, de 22 anos. O jovem faz parte de um segundo grupo, composto por seis manifestantes, detido ontem no Largo da Independência e abandonado na mata, cem quilómetros a norte de Luanda.

“Tive medo, ali no meio da mata para onde nos levaram. Obrigaram-nos a deitar no chão [alinhados juntos], de cabeça para baixo, apontaram-nos as armas, tiraram-nos fotografias e começaram a espancar-nos”, conta Alex Chabalala.

O grupo de seis jovens foi detido por volta das 15h15, por efectivos da PIR, quando tentaram furar o forte dispositivo policial e de segurança destacado no local para impedir a realização da vigília.

Segundo Santos Contuala, de 33 anos, vários agentes espancaram-nos com socos e bofetadas nos rostos, com as coronhas das armas por todo o corpo, para além de pontapés com botas militares e vergastadas com cavalo-marinho.

Os capturados tiveram uma breve passagem pelo comando da PIR, onde foram submetidos a mais violência e a interrogatórios sobre as suas supostas ligações a partidos da oposição. A seguir foram transferidos para um camião policial, onde os obrigaram a manter-se deitados, de barriga para baixo. Escoltados por mais quatro viaturas com agentes policias e de segurança, foram conduzidos a uma mata para além de Calomboloca, próximo da estrada nacional.

Faziam também parte desse grupo Afonso “Feridão”, de 24 anos, António Caquienze “Duke”, de 36 anos, Manuel Pedro Kioza “Steven”, de 23 anos, e Sampaio Kimbamba, de 27 anos.

O Comando do Ministro do Interior

O jornalista Alexandre Solombe, que acompanhou os desafortunados ao hospital e que várias vezes sofreu agressões policiais por cobrir manifestações, fala sobre a estratégia governamental de incremento da violência contra os manifestantes.

“A estratégia de levar os detidos ao comando da PIR para lá serem torturados é uma versão ao extremo da medida que nos foi aplicada a 20 de Setembro passado”, indica o jornalista. Na altura, Alexandre Solombe, o autor e jornalista Coque Mukuta e os sete manifestantes libertados pelo tribunal havia menos de meia hora foram cercados e detidos por um efectivo de 54 agentes da PIR fortemente armados.

Maka Angola soube, de fonte policial fidedigna, que toda a operação de detenção e violência contra os detidos, no Comando da PIR, foi dirigida pelo ministro do Interior, Ângelo de Barros Veiga Tavares

A operação contra os jornalistas, em Setembro passado, segundo dados obtidos pelo Maka Angola, tinha dois objectivos principais. Primeiro, visava testar as reacções internas e externas com a detenção de figuras cujos perfis aparentavam despertar maior atenção de protesto, no âmbito da nova estratégia de repressão.

Segundo, os telemóveis dos jornalistas e a máquina fotográfica do autor, entretanto confiscados, foram levados imediatamente ao Laboratório de Criminalística, onde foram analisados os contactos gravados, as mensagens e as fotografias.

A destruição dos equipamentos, a posteriori, serviu apenas para despistar os verdadeiros objectivos da operação. A análise dos contactos visava identificar figuras do regime que supostamente estariam a apoiar a liberdade de imprensa, a sociedade civil e o exercício dos direitos de cidadania consagrados na Constituição.

A reacção fugaz e inconsequente, a nível nacional e internacional, conforme informações chegadas a este portal, estimulou, com sucesso, a aplicação extrema do método de breve detenção, tortura severa por agentes qualificados do Estado e a sua libertação longe da cidade.

Esses métodos resultam da transferência de práticas usadas sistematicamente por efectivos das Forças Armadas Angolanas (FAA) e das empresas privadas de segurança, pertencentes a generais e comissários da Polícia Nacional, contra garimpeiros na região diamantífera das Lundas.

Desde então, o ministro do Interior chamou a si a coordenação directa do Comando de Operações criado para a repressão de manifestantes e outras figuras consideradas demasiado incómodas para o regime. Com o apoio político da Casa de Segurança do Presidente da República, para servir de músculo às referidas operações, o ministro tem a seu cargo todo o dispositivo da PIR, a força de elite do governo. A PIR é comandada pelo comissário Alfredo Quintino Lourenço (Nilo).

Albano Pedro afirma que a polícia violou os direitos e liberdades fundamentais dos manifestantes. “O que está em causa não é apenas a violência em si, mas também a ilicitude dos actos da PIR, ainda que não configurassem quaisquer actos de violência”, refere.

O advogado enuncia os indícios de crimes cometidos pelas forças policiais contra a liberdade dos manifestantes, contra a sua integridade física e honra, por rapto, cárcere privado e o que considera serem tentativas de homicídio contra alguns dos manifestantes pela gravidade das lesões que lhes foram infligidas.

Para o advogado, deve haver procedimentos criminais contra os mandantes e executores da acção, assim como o Estado deve assumir a responsabilidade civil pelos actos de terror.

 

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