Diferença: Igualdade entre Filhos do PR e Angolanos

O sociólogo João Paulo Ganga é autor de um texto interessante intitulado “Não há improbidade na nomeação de Isabel dos Santos”, onde aduz vários argumentos jurídicos a favor da legalidade da nomeação de Isabel dos Santos para o cargo de presidente do Conselho de Administração da Sonangol.

Ora, este comentário pretende justamente dizer ao sociólogo que não lhe assiste razão jurídica. Vejamos porquê:

O primeiro argumento assenta no artigo 120.º b) da Constituição da República de Angola, que confere ao presidente da República, enquanto titular do poder executivo, a competência para definir a orientação política do país nos termos da própria Constituição. Daqui infere João Paulo Ganga que o José Eduardo dos Santos tem poderes para nomear como lhe aprouver, com discricionariedade absoluta, os conselhos de administração das empresas públicas. Tudo fica então à mercê da vontade do presidente.

Não é assim.

Em primeiro lugar, a vontade do presidente não é soberana: está sempre limitada pela Constituição e pela Lei.

Em segundo lugar, é necessário definir se a nomeação de Isabel dos Santos se trata de um acto político ou de um acto administrativo. Se estivermos perante um acto político, a latitude do presidente é maior, e a sindicância judicial muito reduzida. Serão os eleitores quem avaliará a prestação presidencial, a não ser que esse acto político colida directamente com a Constituição e com a Lei. Se, pelo contrário, estivermos perante um acto de natureza administrativa, então a nomeação é plenamente sindicável pelos tribunais.

Ao passo que a nomeação de um ministro é um acto político, a nomeação do conselho de administração de uma empresa pública petrolífera é um acto que pouco tem a ver com a orientação política dos petróleos. Para isso existe o ministro dos petróleos.

A nomeação do presidente do conselho de administração da Sonangol tem como objectivo primordial garantir uma gestão eficiente, entrando de resto no domínio da protecção do interesse geral. Nessa medida, estaremos perante um acto administrativo perfeitamente sindicável por critérios de legalidade nos tribunais.

De uma maneira ou de outra, competiria sempre aos tribunais pronunciarem-se e decidirem sobre a natureza do acto de nomeação, e nunca nenhum acto dependerá apenas da vontade do soberano. Mesmo quando este goza de ampla margem de manobra e não hesite em valer-se dela, ainda assim tem que seguir os preceitos legais.
O segundo argumento de João Paulo Ganga assenta no artigo 23.º da CRA: o princípio da igualdade. Nota Ganga que “Isabel dos Santos não pode ser penalizada pelo simples facto de ser filha do PR sendo-lhe vedada o acesso a uma oportunidade comum a qualquer cidadão”.

O princípio da igualdade quer dizer que se deve dar tratamento igual ao que for essencialmente igual, devendo tratar-se diferentemente o que for essencialmente diferente. Aliás, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções; proíbe, isso sim, a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio. (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 437/06, numa formulação do princípio aplicado à Constituição Portuguesa, reflectindo a interpretação geralmente aceite).

No sentido apontado, Isabel dos Santos tem uma qualidade que só mais uma dezena de cidadãos detém: é filha do presidente da República em exercício. É óbvio que isso lhe cria – a ela e à restante prole – constrangimentos para o exercício de cargos públicos. Em regra, não devem poder ocupá-los. O princípio da igualdade só seria violado se a um filho do presidente se permitisse ocupar um cargo público enquanto a outro lhe fosse vedado ocupar um cargo público.

O terceiro argumento é confuso. Se bem se percebe, defende a ideia de que o presidente, por ter um estatuto próprio, não está sujeito à Lei da Probidade Pública (LPP), apresentando como exemplo a impossibilidade de se lhe aplicar o artigo 33.º da LPP, por força do estatuto criminal próprio do presidente previsto no artigo 127.º da CRA.

De uma coisa não resulta a outra. É verdade que o presidente tem um estatuto criminal próprio. Mas também é verdade que, quando deixar de ser presidente, será julgado, se for caso disso, com um estatuto ordinário. E certamente não é por ter um estatuto criminal próprio que o presidente pode cometer crimes ou desrespeitar a lei. Continua proibido de os fazer, e os seus actos que desrespeitem a Constituição ou a Lei serão nulos ou anuláveis. Não têm valor na ordem jurídica. Apenas em termos de consequências criminais têm um foro e uma norma especial, mas somente naquilo que se refere à responsabilização pessoal criminal do presidente, e não à validade / invalidade do acto em si.

Basicamente, o sociólogo João Paulo Ganga tem uma visão soberanista dos poderes presidenciais. O presidente é soberano, e pode nomear quem quer. O facto social pode ser esse, mas o facto jurídico não é.

José Eduardo dos Santos não é soberano: é um mero órgão de soberania através do qual o povo exerce o seu poder, e, como todos os órgãos, tem que se submeter à Constituição e à Lei. Apenas aos tribunais compete decidir qual é a lei.

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